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Gata Borralheira

DANIEL LIMA - 16/04/2002

-- Se soubesse que essa primeira rodada de bate-papo seria tão cáustica, teria pedido uma água Perrier antes. Francamente, eu que sou a estrela da Região Metropolitana, cercada de satélites por todos os lados, não queria fazer uma confissão para vocês, para não deixá-los ainda mais preocupados, mas como estamos num encontro informal, não consigo resistir a um comentário. Trata-se do seguinte: se vocês estão inquietos hoje, imaginem daqui a alguns anos. Sabem por quê? Porque cada vez mais estou expulsando meus problemas sociais para a periferia que me rodeia. E quem está mais próximo -- no caso vocês sete do ABC -- vai se danar. É lógico que tenho uma montanha de dificuldades e que não será do dia para a noite que vou terraplenar o caos social. Mas o amontoado que eu reduzir vai significar mais dificuldades sociais para vocês. Meu crescimento demográfico nos últimos 10 anos é menos da metade do de vocês. Se virem!

-- Peraí, peraí, que esse recado não serve para mim. Sou pequeno de território, só tenho 15 quilômetros quadrados, e aqui não cabe mais ninguém. Os últimos vestígios explícitos de pobreza, que é um conjunto de algumas dezenas de cortiços, já estão sendo devidamente eliminados. Para não dizer que não tenho mais espaço, acabei de dar uma acertada na legislação e agora posso receber fortíssimo adicional de moradores de classe média. Vou ganhar uns arranha-céus que vão aumentar minha densidade demográfica, vão tornar as ruas mais intransitáveis, mas assegurarão novas receitas tributárias próprias, como é o caso do IPTU, parte do IPVA e ITBI, além de aumentar o consumo de produtos e serviços. Quem não tem o cão das indústrias, se vira com o gato da demografia seletiva favorecido pela proximidade com São Paulo e também com o rebaixamento das alíquotas do ISS.

-- Calma, São Caetano, que não estava me referindo a você. Sei que não tenho como desafogar meus tormentos em sua direção, mas o restante do ABC é sopa no mel para quem quer desopilar o fígado da exclusão social, não é verdade, amiga Diadema?

-- Esse seu sarcasmo, estimada São Paulo, é de doer. Parece que você tem prazer de me encher de gente sem emprego, sem casa, sem perspectiva. Me sinto às vezes como se estivesse enxugando gelo de ações sociais. Quanto mais faço na área social, e isso ninguém pode negar, mais tenho de fazer. É incrível como essa tarefa não tem fim. Estou cada vez mais encalacrada, porque minhas receitas estão recuando por causa da discreta mas evidente evasão de indústrias que sempre sustentaram meu orçamento. Sinto na pele o efeito sanfona da elasticidade dos custos dos serviços públicos e sociais que mantemos e a diminuição das receitas tributárias. Sabem que ritmo resulta disso: um hip hop desafinado. 

-- Já recomeçou a sessão choradeira. Chore à vontade, Diadema, porque estou atolada de problemas há dezenas de anos e agora estou vendo luz no fim do túnel. É verdade que a claridade vem do ABC, mas isso não me interessa. Quero é salvar a minha pele. 

-- Muito bonito, São Paulo. Você salva a sua pele mas larga a bomba na mão da gente. Não é só Diadema que anda sofrendo com o seu transbordamento. Também vejo minha periferia cada vez mais povoada, mais marginalizada. E tenho de correr para dar água, luz, esgoto. Mas não tem jeito e os jornais e revistas metem o pau. Dizem que São Bernardo é relapso nas questões que envolvem os mananciais, que permiti usos e abusos inconcebíveis para quem tem tanto poderio econômico, mas nos últimos anos, deveriam reconhecer, estou tentando me ajeitar.

-- Se me permite o vizinho São Bernardo, sinto-me no dever de puxar a sardinha para minha brasa de lamentação também porque estou sendo atingido duramente pela periferização demográfica, por força da vizinhança com a região Leste de São Paulo. Se São Paulo ataca vocês de um lado, ataca a mim, Santo André, do outro. Os números mais recentes do IBGE me deram calafrios, porque o índice de crescimento da população na minha periferia é assustador. Não sei de onde surgiu tanta gente. Uma parte, confesso, é de antiga classe média baixa que morava nos bairros mais centrais e que, desempregada, teve de se virar para reduzir os custos de moradia, vendendo imóveis e se deslocando para os bairros mais distantes. Mas, em grande escala, recebi mesmo os excluídos que já não cabem em São Paulo. Não é à toa que São Paulo praticamente parou de crescer em população. 

-- Também sofro desse mal, posso garantir. 

-- Está bom, Mauá, está bom. Mas Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra não podem vir com essa conversa porque estão bem distantes das zonas de invasão. 

-- Está certa, São Paulo, está certa. Mas tenho sofrido também o problema, mesmo que em menor escala, mas tenho. 

-- Eu também, como Ribeirão Pires, sinto que estou engordando em população além da conta. 

-- Pelo visto, se até Rio Grande da Serra me critica pelo poder de atratividade migratória que exerci ao longo dos anos, o que posso fazer, nestas alturas do campeonato, é mudar de assunto. Mas antes quero deixar bem claro o seguinte: ainda cresço em 150 mil pessoas por ano. É pouco comparativamente aos meus 10,4 milhões de habitantes, mas vou fazer de tudo para empurrar mais partes desse abacaxi amargo para vocês. Afinal, vocês são sete, e só têm 2,3 milhões de moradores.



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