 
 DANIEL LIMA - 26/09/2025
DANIEL LIMA - 26/09/2025
Há um eixo em comum que associa a história do Diário do Grande ABC a dois ingredientes que, paradoxalmente, retroalimentam-se e ajudam a explicar ativos e passivos da publicação como ferramenta de cultura regional. Barcaça da Catequese significa confluências e entrechoques nesse espaço territorial metropolitano marcado pelo Complexo de Gata Borralheira. A vizinha Capital, Cinderela intrometida e invasiva, participa intensamente desse enrosco.
Pensei em alternativa à marca Barcaça da Catequese nas mensagens ao grupo “Coleguinhas”, de ex-profissionais do Diário do Grande ABC reunidos no aplicativo WhatsApp. Arca de Noé chegou a ganhar alguns centímetros de vantagem, mas foi atropelada como ideia motriz.
Contava com o embrião conceitual de escolha tanto de uma expressão quanto de outra. Optei por Barcaça da Catequese, em referência ao endereço e também à síntese editorial do Diário do Grande ABC. Arca de Noé desmanchou-se no caldeirão do detalhamento do processo.
O Grande ABC deve muito à mágica marca Diário do Grande ABC. A iniciativa tirada dos tempos de Brasil Grande cristalizou o sonho do quarteto de visionários fundadores da pioneira publicação diária. A esquisitice de “News Seller” foi soterrada em maio de 1968.
O estrangeirismo lastreava o gataborralheirismo já presente. Mas era pouco compreendido, acredito, ante a demanda demográfica massificada de migrantes rumo ao Eldorado em fervescente industrialização.
OCUPAÇÃO ALEATÓRIA
Vou anotar o desafio de descobrir quem, afinal, batizou o News Seller de News Seller e o News Seller de Diário do Grande ABC. Desconfio do autor, mas não posso cometer o pecado da pressa e da ignorância conjugados.
Cheguei à região três meses antes da primeira edição do Diário do Grande ABC. Desembarquei da carroceira de um caminhão de mudanças vindo que vim do Interior de São Paulo. Já carregava nas costas dois anos de jornalismo, carreira iniciada em 1966, antes de completar 16 anos. A Rádio Luz e a revista semanal Cinelândia, de Araçatuba, foram meus berços. Entre a oralidade e o textual, optei mais tarde, definitivamente, pela escrita. A palavra falada reproduzida de mensagens alheias à própria produção intelectual é apenas o primeiro parágrafo de um conto inteiro da palavra escrita.
Coloque em campo esses aparentemente penduricalhos informativos para aplainar o terreno de sensibilidade à possível repercussão do uso de Barcaça da Catequese, depreciativo somente para mentes apressadas.
Foi fácil desclassificar a concorrência de Arca de Noé. Barcaça da Catequese é a gênese editorial do Diário do Grande ABC dos primeiros tempos e também de muitos tempos.
Barcaça da Catequese catalisa o sentido de que se constituía embarcação receptiva a quem pretendesse ingressar naquela viagem ousada do jornalismo de todos os dias. Ou não seria mesmo isso conquistar terreno no jornalismo diário de uma região próspera, pujante, mas sem experiência para valer com um produto de informação imaginariamente concorrente dos jornais da vizinha capital?
HARMONIA NAS DIFERENÇAS
Profissionais e aprendizes de todos os endereços possíveis avançaram às páginas do Diário do Grande ABC. No primeiro trimestre de 1971 estava lá naquela casinha da mesma Rua Catequese a escrever para a Editoria de Esportes. Tempos divertidos. Encontrei na Editoria de Esportes, de poucos profissionais, um ambiente de Gazeta Esportiva, que detestava. Minha inspiração, paixão e linguagem estavam nas páginas do moderno Jornal da Tarde.
José Louzeiro, um escritor que caiu de paraquedas na Redação por razões que desconheço, transmitia a certeza de que jornalismo diário não precisava reproduzir uma Faixa de Gaza emocional. Era divertido mesmo quando introspectivo. Conhecia o Grande ABC como conheço a Coreia do Norte. Mas carregava experiência de vida nas decisões editoriais. A diversidade sincronizada é a alma de uma Redação.
Logo fomos todos nós para o prédio da Catequese. Um prédio que simboliza em concreto, design e cores o Diário do Grande ABC de ascensão veloz como a produção da indústria automotiva concentrada praticamente na região. O mesmo prédio que, mais tarde, já sob nova direção, exterioriza a queda especular no ritmo da Doença Holandesa Automotiva do Grande ABC.
EMBALO ECONÔMICO
Seria demais exigir que o Diário do Grande ABC contasse com área de recrutamento editorial dotada de rigores técnicos para dar conta da demanda de avanços. A linha editorial do jornal, como todo jornal nascente naquele período, jornais regionais propriamente ditos, era o encontro da fome de informações convencionais com a vontade de comer de sustentabilidade comercial.
A Barcaça da Catequese navegava nas ondas do extraordinário crescimento econômico. As páginas de classificados de empregos se multiplicavam. O jornal passava a ser uma ilha de reportagens cercada de publicidade por todos os lados. Era mesmo assim, ou por isso mesmo, uma ilha influenciadora.
Barcaça da Catequese era mesmo uma corrida editorial contra o relógio no preenchimento de vagas. Não pensem em correções de rota, por assim dizer, de engenhosidade do quadro de profissionais e desígnios previamente estruturados. Seria exigir demais. Eram tempos de desbravamento do jornalismo regional.
Os jornais da Capital eram referenciais sadomasoquistas, dotados de tradição operacional. Seria impossível conter o gataborralheirismo do Grande ABC na área editorial quando Capital cinderelesca exultava.
Por conta disso, o fenômeno da Barcaça da Catequese registrou ao longo dos tempos fluxos, refluxos e contrafluxos de colaboradores de Redação. Fluxos, refluxos e contrafluxos consistiam na temporalidade errática dos profissionais de Redação.
CELEIRO DE REVELAÇÕES
A Barcaça da Catequese não selecionava os profissionais da Redação com base num plano de voo longevo. Tornou-se por isso espécie de entreposto de ambições e desejos de quem pretendia chegar às grandes publicações da à Capital, navios destinatários dos ocupantes da Barcaça da Catequese.
Ouvi uma frase emblemática, quando não definidora, de um fundador do jornal. Esqueçam a possibilidade de ter sido o diretor de Redação. Fausto Polesi era também jornalista. O que ouvi, afinal? Ouvi uma frase entusiástica sobre a decisão de um jornalista solicitar demissão porque um emprego num canal de televisão da Capital o aguardava. A diretor do Diário do Grande ABC manifestou orgulho de ver o jornal ter formado ou aperfeiçoado um novo profissional de jornalismo para abastecer a grande mídia da Capital. O Diário do Grande ABC tornou-se um celeiro de revelações. Em termos futebolísticos, tornou-se o que se chama de “divisão de base”, um campo de observações de terceiros. Um campo de formação premiada. Esse ainda é o fluxo natural, continuado e permanente de profissionais locais da Barcaça da Catequese.
Mas também houve períodos em que, sem prejuízo do fluxo, o contrafluxo se instalou. Profissionais da Capital enfrentaram o trânsito metropolitano para ocuparem a Redação em Santo André. A greve dos jornalistas em 1979 elevou o movimento por algum tempo. Haveria uma suposta lista negra dos donos dos veículos da Capital. O Grande ABC serviu de refúgio.
CUSTO CUMULATIVO
Tanto num caso quanto no outro, ou seja, tanto nas evasões de cérebros como na absorção de cérebros, o Diário do Grande ABC revelava a alma e o espírito de uma região provincial dividida em sete partes municipalistas e à sombra da maior Capital da América Latina: o gataborralheirismo escrachado ou dissimulado, não importa.
Essa carga dupla e pesada de sacolejadas na Redação do Diário do Grande ABC, com raros períodos de reação (o principal durante a gestão de Alexandre Polesi, filho de Fausto Polesi, um dos fundadores da empresa) cobrou preço pesado na trajetória do jornal, mesmo nos períodos econômicos mais férteis. Ganhou-se muito no intercambio, mas se perdeu em objetividade estrutural. Trataremos disso em capitulo específico.
Entretanto, mesmo com esses solavancos, entre outros descuidos, o Diário do Grande ABC consumido até a chegada deste século vivia muito mais da capacidade de atender à demanda dos leitores. O que temos nos últimos 20 anos é que a tradição da marca, que empalidece no ritmo de debilidades de conteúdo e do ecossistema de comunicação.
Os jornais de papel no mundo inteiro sofrem horrores com novas tecnologias. O Diário do Grande ABC experimenta impacto duplo. Os efeitos colaterais da desindustrialização acabaram com a mobilidade social nos estratos superiores da população -- exatamente o público que sempre demandou pelo jornal.
PERDA DE CONHECIMENTOS
Não há dados históricos de Recursos Humanos do Diário do Grande ABC que dimensionem a origem extrarregional dos profissionais contratados, muitos egressos do Instituto Metodista, em São Bernardo. Acredito que faço parte de uma minoria que coleciona mais de uma década ativa naquela publicação. No meu caso, foram 16 anos em duas etapas distintas. A primeira de uma caminhada profissional que praticamente se iniciava. A segunda, mais de três décadas depois, como comandante da Redação.
A grande massa de jornalistas contratados pelo Diário do Grande ABC ao longo de décadas representa estoque intangível de conhecimentos e vivências perdido a cada demissão voluntária ou não. À falta de organicidade estratégica editorial no chão da fábrica de reportagens, vigorava atmosfera do bom combate tático diário.
Os olhos daquela maioria de jovens brilhavam a cada edição encerrada no horário rigidamente demarcado. A indústria do jornalismo diário sempre trabalha contra o relógio. O avanço tecnológico que pareceria facilitar a dinâmica de produção, como de fato facilitou, não alterou a dinâmica de relógio de fechamento editorial consolidado.
GATA BORRALHEIRA
O processo de esfarelamento de um produto editorial nem sempre é percebido de imediato. No médio e longo prazo provoca danos irreparáveis. Qualidade vai muito além do pressuposto do produto bruto entregue aos leitores. Qualidade em jornalismo são os insumos temporalmente comparativos do que se entrega aos leitores. Fluxos, refluxos e contrafluxos contratuais e demissionais são determinantes.
Se a substituição de ações repetitivas de uma diarista causa contratempos numa residência, imagine o buraco que se abre quando o conhecimento acumulado de um jornalista bate asas? O Diário do Grande ABC viveu sobressaltos na medida em que não resistia à demanda externa. Comemorar a perda de profissionais não parecia sensato.
Complexo de Gata Borralheira é uma enfermidade regional que reflete a inferioridade real em vários setores, além ou principalmente sensorial, diante da Capital tão próxima. Para negar essa evidência geralmente soterrada pelo fanatismo territorial, o Grande ABC reage de forma insana e grandiloquente, o que só confirma essa patologia de efeitos culturais, econômicos, sociais e políticos.
Escrevi o livro Complexo de Gata Borralheira em 2002, lançado que foi num Teatro Municipal de Santo André lotadíssimo. Uma leitura dramática foi agendada e executada em homenagem a Celso Daniel. Era 16 de abril. Celso Daniel faria 51 anos naquela data, não fosse assassinado dois meses antes.
Costumo dizer que basta uma hora e meia de leitura daquelas 150 páginas para compreender as idiossincrasias do Grande ABC. A tiragem foi esgotada. Ninguém se interessou em patrocinar nova edição, que segue atualizadíssima. O Grande ABC vive desde muito tempo um apagão de cidadania. Trataremos disso mais adiante.