Esportes

São Caetano x São Caetano: é
farsa esse grito de liberdade?

  DANIEL LIMA - 15/12/2020

O casamento de conveniência jurídico-esportiva entre a Associação Desportiva São Caetano e o São Caetano Futebol Limitada está no fim ou o que se ensaia é uma farsa para tentar atrair mais uma vez o salvador da pátria Saul Klein, que se afastou da condição de generosidade financeira em meados do ano passado? Temos um caso de armadilha em forma de blefe ou de fato um grito de liberdade, embora tardio mas nem por isso sem perspectiva reparadora?  

O fato é que não pode ser desconsiderada a possibilidade de um São Caetano versus São Caetano sair do terreno do maquiavelismo cênico para o obituário esportivo.  

Nesse jogo de profissionais na arte de sofismar, mitigar os limites entre a realidade e a especulação seria um grande equívoco. Nada, diferente, portanto, do São Caetano desta temporada, sempre com o presidente Nairo Ferreira nos bastidores. Ele articula parcerias estranhas que se desmancham na medida em que obrigações financeiras emergem no calendário. Não satisfeito, reboca Saul Klein para um tablado jamais ocupado pelo ex-mecenas.  Nairo Ferreira confunde deliberadamente paixão esportiva típica de mecenato com investimento.   

Como vender megaproblema?  

A Associação Desportiva São Caetano, berço do São Caetano Futebol Limitada, gerou muitos frutos e sucessos na primeira década deste século. Depois, só desastres. A situação da agremiação é dramática. A dívida superior a R$ 50 milhões é uma barreira a investidores. As glórias ficam em segundo plano ante a montanha de obrigações financeiras a cumprir.  

É muito pouco provável que uma organização empresarial com lastro de idoneidade se meta na enrascada de assumir o futebol profissional da cidade. Há dezenas de clubes associativos em busca de parceiros. E poucos, quase nenhum, registram dívidas tão elevadas.  

Para entender o que se passa na suposta disputa entre o São Caetano Futebol Limitada e a Associação Desportiva São Caetano é indispensável colocar as duas agremiações no mesmo compartimento explicativo. É a associação esportiva que dá suporte legal ao clube empresarial. A legislação assim determina em casos nos quais o futebol é tratado como negócio. A opção do São Caetano pelo futebol empresarial está no começo deste século. Não faltam equipes empresariais no futebol brasileiro com o mesmo perfil.  

A novidade fabricada ou não é que o presidente do Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano prometeu ao Diário do Grande ABC da semana passada que iria dar um xeque-mate em Nairo Ferreira, o quase-eterno presidente do São Caetano Futebol Limitada. Os resultados em campo (duas goleadas acachapantes na Série D do Campeonato Brasileiro), salários de jogadores e comissão técnica atrasados, endividamento gigantesco e esfacelamento diretivo levaram Antônio de Padua Tortorello a anunciar uma medida radical.  

Iniciativa nebulosa   

Vejam o que ele disse ao jornal, depois de suposto fim de paciência do Conselho Deliberativo do clube associativo com o clube-empresa, ao anunciar que Nairo Ferreira receberia ontem, segunda-feira, uma notificação para deixar o espaço que ocupa na sede social do clube, bem como, sempre segundo o jornal, realizar rescisão amigável do contrato, devolvendo o controle do time para que a AD São Caetano possa negociar com outro parceiro: 

 A notificação será feira na segunda-feira. A limitada é empresa particular e não pode usar prédio público, vai ter de alugar espaço para se instalar, explicou: “Temos contrato com a limitada até 2027, mas está deixando a desejar faz um ano, não está cumprindo com os requisitos para bom desempenho do futebol. São pagamentos atrasados, dívidas. Não podemos ficar nessa situação que funcionário não recebe, jogador não recebe e não entra em campo e dá WO, resultados vexatórios de 9 a0 e 6 a 0...É uma vergonha. Então vai ser notificado para desocupar e para eventual rescisão amigável” emendou Antônio de Padua Tortorello, que desde abril está também na presidência do clube social em razão da não realização de novos eleições, canceladas por causa da pandemia. O novo pleito já tem data: 25 de janeiro. O líder do conselho ainda faz questão de esclarecer que essa não é uma medida definitiva e está condicionada a uma contrapartida do São Caetano Futebol Limitada e Nairo Ferreira de Souza: “Se não houver outra patrocinadora imediatamente para tocar o futebol, vamos entrar com ação de rescisão. Se der certo, a gente cancela”, explicou Padua, que admite a possibilidade de estender o prazo desta rescisão caso seja apresentada solução: “Nem conselho, nem torcedor, nem dirigentes municipais estão satisfeitos com o que está acontecendo. O São Caetano não pode ficar nessa situação. Se a gente romper com a limitada, fica mais fácil (negociar com outra empresa para gerir o futebol)” – escreveu o Diário do Grande ABC. 

Sinuca de bico  

Como se observa, a saída da toca da inoperância diretiva e de cumplicidade do silêncio ou de descaso com os erros da diretoria do São Caetano Futebol Limitada colocam o presidente do Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano numa sinuca de bico. 

Padua Tortorello, irmão de Luiz Tortorello, maior incentivador público do futebol do São Caetano, não sabe que rumo tomar. O espalhafato do anúncio de rompimento convive como a harmonização de interesses. O ponto visceral é a chegada de uma organização patrocinadora do futebol. Ou seja: uma empresa que coloque o São Caetano Futebol Limitada no portfólio de investimentos. 

É pouco provável que a briga seja mesmo para valer. E não se sustenta nem mesmo com o ingrediente da denúncia tardia de que o São Caetano Futebol Limitada ocupa irregularmente uma área pública, transformada em sede social.  

Não é de hoje que uma versão sustentável pela lógica de negócios coloca a manutenção da sede social como ramal de excessivos e desnecessários gastos da agremiação empresarial. Tirar a sede social do São Caetano Futebol Limitada favoreceria supostamente a atratividade negocial da agremiação mais que qualquer retaliação proposta. Resta saber até que ponto o desvio legal apontado por Padua Tortorello não tem filhotes de inconformidades administrativas do clube associativo. Inclusive envolvendo dinheiro público. A Associação Desportiva São Caetano seria uma caixa-preta com ramificações no Paço Municipal, segundo versões de sempre cautelosas fontes. 

Uma demora inexplicável?  

O que se pergunta é porque somente agora o Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano decidiu reagir aos abusos do São Caetano Futebol Limitada comandado por Nairo Ferreira.  

Antes que os maus resultados em campo e a insolvência financeira mostrassem a face da incapacidade administrativa do clube empresarial, muito dinheiro do mecenas Saul Klein foi transferido à agremiação. Mais de R$ 80 milhões nos últimos cinco anos, a terminar em 2019. Com dinheiro farto não havia insatisfação com os resultados em campo, de rebaixamentos seguidos de rebaixamentos.  

A pergunta que se faz com justificativas fluviais é simples: cadê o dinheiro doado pelo ex-executivo e herdeiro da Casas Bahia?  

Há uma linha sincrônica que ajudaria a explicar a situação cuja essência duvida-se que uma viva alma do Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano não tenha conhecimento: os resultados da equipe em campo foram simetricamente antagônicos à degringolada econômica, por mais que o mecenas Saul Klein continuasse a alimentar a fornalha de gastos.  

Considerando-se que a Associação Desportiva São Caetano tem parte ínfima (apenas 1%), mas legalmente comprometedora das ações do São Caetano Futebol Limitada, torna-se compulsório que o Conselho Deliberativo e o Conselho Fiscal se omitiram ao longo das temporadas. O casamento de conveniência jurídico-esportivo poderia ter-se transformado em casamento de conveniências outras? Tudo é possível. 

Para que o Conselho Deliberativo do São Caetano não entre para a história do futebol como uma extensão da incapacidade de gestão do clube-empresa e também para que não pairem dúvidas sobre os destinos de dinheiros desviados da finalidade proposta pelo doador, somente uma intervenção para valer, rigorosa, com possível extensão penal, aliviaria a desconfiança generalizada de que Nairo Ferreira e o vice-presidente do clube-empresa, Genivaldo Leal, estavam afinadíssimos com peças-chaves dessa instância associativa.     

Trocando em miúdos e de forma mais popular: a Associação Desportiva São Caetano precisa mesmo saltar do muro da passividade, quando não da cumplicidade como suposta apoiadora de tudo que a dupla Nairo-Leal levou a cabo e a dano da agremiação ou, então, como castigo, os representantes do Conselho Deliberativo deveriam ser igualmente levados a instâncias inclusive criminais por conta das irregularidades tentaculares que impactaram o representante do futebol da cidade.  

Jogo de cena?  

Tudo isso está longe de parecer ou se tornar radical demais ante a perspectiva de que o clube-empresa tem um horizonte de sobrevivência breve e tumultuado e o clube associativo não passaria no julgamento popular de uma pinguela malparada para a legitimação de irregularidades consentidas e incentivadas.  

Dessa forma, ganha mesmo contornos de realidade projetada a possibilidade de o desabafo de Padua Tortorello não passar de jogo de cena. Algo programado para instalar o Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano longe dos crimes que supostamente teriam feito do São Caetano Futebol Limitada uma mistureba inclusive com participação de organizações à margem do padrão convencional da legislação esportiva.   

De novo e em termos mais populares: ou o Conselho Deliberativo da Associação Desportiva São Caetano dá uma surra de ética e moralidade no São Caetano Futebol Limitada comandado durante anos por Nairo Ferreira e Genivaldo Leal ou frequentará o mesmo saco de gatos pardos de malabarismos financeiros que redundaram em enriquecimentos familiares mais que estranhos dos dois titulares da agremiação empresarial.  

Nada de materialidade  

E olhem que tudo isso não é pouca coisa porque doações de R$ 80 milhões (sem contar a inflação) em cinco temporadas, como sincronismo perverso de avanço de dívidas múltiplas, não parecem algo que possa ser catalogado como insolvência empresarial involuntária. Sobremodo porque não houve qualquer investimento em bens materiais. O São Caetano joga num estádio municipal, não tem sede própria, não conta com centro de treinamentos para qualquer uma das divisões de base e também não reúne espaço própria para preparação da equipe de profissionais.  

É preciso muita engenharia financeira para uma façanha de tal magnitude. Mais ainda: o tripé da destruição se completa quando, além de dívidas em oposição às generosas doações, o São Caetano Futebol Limitada fez escalada regressiva recordista e por isso mesmo incomum no futebol: caiu na hierarquia a cada nova temporada, até deixar o circuito nacional.  

Teria sido proposital trocar a vitrine de competições mais interessantes à grande mídia pela clandestinidade dos negócios escusos e, portanto, a salvo da curiosidade de terceiros? Ou seja: até que ponto não era muito melhor tornar o rebaixamento uma rotina que servisse de couraça à manutenção da maquinaria delitiva?  Ainda mais – e até prova em contrário – com os comandantes do clube-empresa transformando o Conselho Deliberativo do clube associativo em monumento de subserviência? 

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