Imprensa

Folha de S. Paulo subestima
leitores com mais fake news

  DANIEL LIMA - 06/09/2021

A manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) da Folha de S. Paulo deste domingo é fake news total. Total e agregado, porque se expande à reportagem da página interna, na qual a manchete também lubrifica a enganação interpretativa numa engrenagem de dados obscuros, quando não manipulados. 

A Folha de S. Paulo faz dos militares alvo preferencial entre aqueles que se alinham ao bolsonarismo. Não tenho parentes militares e tampouco endosso determinadas pretensões da classe. Sou apenas um jornalista com experiência na função de ombudsman autorizado ou não. E que não tem receio algum de enfrentar torcidas organizadas cegas às evidências e constatações.  

A Folha de S. Paulo deste domingo, na vitrine principal do produto que leva ao público, é uma fraude.  

Até começar a dedilhar este texto estava em dúvida se reproduzia integralmente a reportagem da Folha de S. Paulo, escalonando-a com observações de ombudsman não autorizado, ou se simplesmente emitia juízo de valor sobre o produto que o jornal paulistano ofereceu aos leitores.  

Contrapontos intercalados  

O que os leitores acham que devo fazer? Pensem um pouco enquanto penso também. Vou por um caminho ou por outro? O primeiro expressaria uma autenticidade protetiva à verdade incontestável. O segundo, por mais que se assegure da autenticidade dos enunciados do jornal, poderia ser subjetivamente colocado em dúvida pelos leitores. Nada melhor que contar com a prova do crime editorial.  

Escrito isso, decidi que decidi pegar a primeira estrada editorial. Vou reproduzir a reportagem completa da página interna com as respectivas ponderações. Estamos combinados? Vamos lá, então.   

Folha de S. Paulo – Manchete de página interna: “Militares que comandam estatais acumulam até R$ 260 mil em salários”. 

Ombudsman não autorizado – Manchete: “Só militar que preside Petrobrás ganha salários acima da média d nas estatais”. 

Folha de S. Paulo – À frente de um terço das estatais com controle direto da União, militares de Exército, Marinha e Aeronáutica acumulam as remunerações recebidas por integrar as Forças Armadas ou benefícios pagos pelas empresas. No governo de Jair Bolsonaro (sem partido), oficiais das três Forças ganharam cargos estratégicos e benefícios na administração pública federal, o que se estendeu às estatais, como salários altos e controle de orçamentos milionários. Das 46 estatais com controle direto da União, 16 (34,8%) são presididas por oficiais de Exército, Marinha e Aeronáutica. A grande maioria deles está na reserva, e uma pequena parte está aposentada (reformada). Um levantamento feito pela Folha revela que em 15 das 16 estatais há acumulo de remunerações. O oficial recebe tanto o valor equivalente ao exercício militar quanto a remuneração paga pela estatal.   

Ombudsman não autorizado – A reportagem carrega viés discriminatório de que supostamente há privilégio na ocupação de um terço das estatais por militares da reserva, principalmente. Nada mais estupido quando não há ilação correspondente (o que não deixaria de ser estúpido, também, mas não discriminatório) ao período de outros presidentes de República com categorias profissionais mais afeitas a seus interesses político-ideológicos. Caso de sindicalistas, acadêmicos e integrantes partidários, por exemplo, durante o governo petista de Lula da Silva, e mesmo anteriormente, de Fernando Henrique Cardoso. Também é de gigantesca obtusidade e hipocrisia a tendenciosidade do texto que procura criminalizar os militares por acumularem salários. Como se tivessem de abrir mão de aposentadorias ou da remuneração nas estatais. De novo, deveria o texto remeter a situações análogas, inclusive em estatais não comandadas por militares – a maioria, convém lembrar.   

Folha de S. Paulo – Esses militares assim, estão recebendo remunerações brutas que variam de R$ 43 mil a R$ 260 mil. Todos esses valores excedem o teto do funcionalismo público federal, de R$ 39,3 mil, que é o salário de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). No levantamento feito pela reportagem, uma única estatal informou ter aplicado um abate-teto, para limitar os ganhos a R$ 39,3 mil: a EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), responsável por 40 hospitais universitários federais e vinculada ao Ministério da Educação. General do Exército da reserva, Oswaldo Ferreira auxiliou Bolsonaro desde a campanha eleitoral em 2018. Ele presidente a EBSERH, são mais R$ 28,6 mil brutos. Até abril, havia a aplicação de um abate-teto de R$ 25 mil. Isso deixou de ocorrer em razão da edição de uma portaria pelo Ministério da Economia, naquele mês, que permitiu o acúmulo de remunerações por militares da reserva que ocupam cargos no governo. Assim, o teto passou a ser aplicado individualmente, em cada remuneração, o que levou ao acúmulo de ganho.   

Ombudsman não autorizado – A confissão do crime da manchetíssima da primeira página e da manchete da página interna, que remete à proliferação de salários nababescos ou algo semelhante, está clara: apenas o presidente da Petrobras conta com salário de R$ 260 mil. Os demais são menos expressivos e se referem ao acúmulo de aposentadoria e atividade corporativa. A generalização é um mote para alavancar audiência nas redes sociais. Fake news da pior espécie, porque conta com a proteção, embora cada vez menor, da tradição da marca da publicação.   

Folha de S. Paulo – A canetada beneficia diretamente Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e ministros que são militares, como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Walter Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Secretária-geral da Presidência). No caso do presidente da EBSERH, o acúmulo também passou a ocorrer. “A portaria está alinhado ao que já preconizavam decisões do STF e acórdãos do TCU (Tribunal de Contas da União)”, afirmou a estatal em nota. Antes da portaria, o acúmulo já era uma regra nas estatais comandadas por militares. A medida do Ministério da Economia passou a ser usada como justificativa formal para essa sobreposição de remuneração. Das estatais que responderam aos questionamentos da reportagem, seis apontaram a medida com um dos instrumentos legais usados para os pagamentos duplicados. Outros instrumentos legais que garantem os salários acima do teto, conforme as empresas, são a própria Constituição Federal e decisões do STF e do TCU, além de um decreto de 2019 e um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União de 2020.  

Ombudsman não autorizado – Como se observa, há uma forçada de barra da reportagem ao procurar transmitir aos leitores a ideia de que se trata de uma sujeira dos militares, quando o próprio jornal, de forma expositiva (não explicativa quando lhe interessa), registra, apenas registra, a legalidade remuneratória. São dois pesos e duas medidas com a proposição compulsória de manchar a reputação das estatais na relação com seus colaboradores e, -- insistindo – ignorando as demais empresas sob tentáculos do Estado e suas peculiaridades em recursos humanos.  

Folha de S. Paulo – As remunerações mais expressivas são pagas ao presidente da Petrobrás, o general de Exército Joaquim Silva e Luna. O militar chegou ao cargo em abril deste ano, após uma intervenção direta de Bolsonaro na estatal. Por estar na reserva, no topo da hierarquia militar, Silva e Luna recebe R$ 32 mil brutos. Já na Petrobrás, conforme o formulário de referência divulgado pela estatal aos investidores, a remuneração média mensal chega a R$ 228 mil, levando em conta ganhos fixos e variáveis referentes ao ano de 2020. Os ganhos fixos, na prática, correspondem a uma remuneração mensal de R$ 83 mil ao presidente da estatal. Os variáveis ficam para o fim do ano. Para 2021, os ganhos variáveis previstos são maiores, em comparação com 2020, conforme o formulário. Assim, somando todos os ganhos o general ganharia pelo menos R$ 260,4 mil brutos por mês, incluída a remuneração de militar. As informações sobre os pagamentos recebidos como militar da reserva estão no Portal da Transparência do governo federal, com dados atualizados até junho. Questionada sobre o acúmulo, a Petrobrás afirmou, em nota: “O cargo de presidente da Petrobras está enquadrado como administrador. Em decorrência disso, sua relação com a companhia é institucional, com perfil estatutário, e decorre do estatuto social da companhia, motivo pelo qual não se aplicam as restrições legais previstas quanto à remuneração dessa atividade”.   

Ombudsman não autorizado – Na medida em que avança a reportagem da Folha de S. Paulo, mais se afunda o conceito de supostos privilégios e outras coisas envolvendo os militares na gestão de estatais. Não existe, como se observa, nada que seja diferente de tempos passados na condução dessas empresas, quanto aos cargos ocupados por profissionais não ligados às Forças Armadas. Sobre isso, aliás, falhou a reportagem ao não ter o diagnóstico análogo das demais estatais (65% do total) que não contam com militares da ativa ou principalmente da reserva. A tradução disso é que a pauta, o instrumento que definiu como seria a reportagem, surgiu de forma maniqueísta e exploradora de um quadro político-institucional grave, véspera de Sete de Setembro, com o objetivo implícito de reduzir a carga de credibilidade dos militares.   

Folha de S. Paulo – Presidente dos Correios, que passa por um processo de privatização, o general de Divisão Floriano Peixoto Vieira Neto tem um salário bruto de R$ 46,7 mil. Como miliar da reserva, são mais R$ 30,6 mil, o que soma R 77,3 mil. Segundo a estatal, não “há necessidade de esclarecimentos mais elaborados” para o acúmulo de remunerações. “A diretriz acerca da remuneração de agentes públicos encontra-se disposta na própria constituição, que determina quais agentes públicos se submetem ao chamado teto. Essa limitação se estende tão somente aos ocupantes de cargos da administração direta, autárquica e fundacional. Os Correios são uma instituição pública de direito privado”, disse, em nota. O acúmulo, diz a empresa, é legal e corresponde ao salário à frente da estatal que atua no “mercado concorrencial” e à “aposentadoria conquistada ao longo de 41 anos de serviço no Exército Brasileiro”.   

Ombudsman não autorizado – É chover no molhado, mas não custa repetir: a reportagem da Folha de S. Paulo, da manchete relativa à manchetíssima da Folha de S. Paulo de domingo, é uma ação deliberadamente enganosa no sentido de que transforma a verdade legal em penduricalho em nome da inverdade escrachada. Não há argumentos técnicos e jornalísticos que assegurem e corroborem ilicitude subjacente nos títulos destacados na primeira página e na página interna.  

Folha de S. Paulo – A remuneração dos militares nas estatais segue uma orientação do próprio governo, por meio da Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais do Ministério da Economia, segundo notas de estatais à reportagem. É o que sustenta, por exemplo, a Infraero. O tenente-brigadeiro da reserva Hélio de Paes Barros Júnior, presidente da empresa, recebe R$ 38,1 mil brutos da estatal e R$ 33,8 mil como militar. Barros Júnior também integra o conselho de administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos, com remuneração de natureza privada na cada dos R$ 15 mil. “Por não integrar o sistema Siape (Sistema Integrado de Recursos Humanos) do governo federal, a Infraero remunera seus empregados e dirigentes observando as orientações da Sest e deliberação da assembleia-geral ordinária”, afirmou a estatal em nota.   

Ombudsman não autorizado – Propositadamente ou não, a reportagem da Folha de S. Paulo omite informações relevantes também nesse ponto: não situa no tempo e no espaço político-administrativo as especificidades da Infraero e eventualmente de outras estatais. Encaminha, portanto, algo no sentido crítico de que as estatais e suas políticas de recursos humanos são uma invenção do atual governo federal. 

Pior na primeira página   

Para completar (e deixo para o fim de propósito), vou à primeira página da Folha de S. Paulo de ontem, vitrine maior do jornal, e à manchetíssima “A frente de estatais, militares chegam a ganhar R$ 260 mil”, com direito à linha fina, linha auxiliar: “Portaria da Economia libera acúmulo; oficiais dirigem 35% das empresas federais”.  

Folha de S. Paulo – Militares colocados pelo governo Jair Bolsonaro no comando de 1 em cada 3 empresas sob controle da União acumulam remunerações mensais que vão de R$ 43 mil a R$ 260 mil entre vencimentos advindos das Forças Armadas e salários ou benefícios pagos pelas companhias, informa Vinicius Sassine. Hoje, 16 das 46 estatais ligadas ao governo federal são presididas por oficiais do Exército, Marinha e Aeronáutica. Em 15 desses casos, eles recebem o valor equivalente ao exercício militar e a remuneração como executivo, excedendo o teto de R$ 39,3 mil imposto ao funcionalismo público federal. Questionados, só a Empresa de Serviços Hospitalares (EBSERH), que gere hospitais universitários), disse seguir o teto. Mas desde abril, portaria do Ministério da Economia permite considerar o limite para cada remuneração em separado, e os pagamentos ao presidente da EBSERH subiram. Além dela, seis outras citaram a medida como base legal. Foram mencionados ainda a Constituição, decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União. Os maiores vencimentos são do general Joaquim Luna e Silva na Petrobras.   

Ombudsman não autorizado – A chamada de primeira página da Folha de S. Paulo supera os equívocos da página interna porque provavelmente foi preparada por um terceiro profissional, apressado demais na leitura da matéria-prima original. Há em comum entre a primeira página e a página interna uma sintonia perfeita de criminalização ética e moral dos militares. Algo que teria sustentação jornalística não fosse o fato de a própria Folha de S. Paulo ter sido informada (e não ter contestado com base em avaliações de especialistas) da legalidade das medidas.

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