Regionalidade

Pecados capitais que a região
precisa começar a exorcizar

  DANIEL LIMA - 04/11/2021

Pode ser qualquer outro tratamento também, além da sugestão metafórica do exorcismo. Quem sabe o divã da psicanálise, as estatísticas dos matemáticos, os dados de Inteligência Artificial, ou um coquetel disso tudo? O fato é que o Grande ABC precisa reduzir a carga do que há muito tempo chamei de sete pecados capitais de uma regionalidade em frangalhos. Quais? Me acompanhe. 

Os sete pecados capitais do Grande ABC foram exumados em forma de análise num texto que publiquei na revista de papel LivreMercado, edição de março de 2006. Seguem esses pecados capitais praticamente inalterados. Ou agravados. Vejam quais são: 

1. Luxúria do triunfalismo.  

2. Preguiça do provincianismo. 

3. Ira ao regionalismo. 

4. Gula do estrelismo.  

5. Cobiça do corporativismo.  

6. Avareza do aparthismo. 

7. Inveja do gataborralheirismo.  

O que produzi há 15 anos foi e continua sendo uma síntese do que acumulei principalmente a partir de março de 1990, quando lancei um tabloide em formato de insumos de revista chamado LivreMercado. Uma publicação que somente em novembro de 1996 ganhou forma física de revista. Nada de extraordinário no setor. Revistas internacionais requisitadíssimas também não foram concebidas sob o aprisionamento convencional, mas não abriram mão de textos que iam além do jornalismo diário fastfoodiano.  

Replantio de ideias  

Reproduzir integralmente os sete pecados capitais do Grande ABC é uma oportunidade especial de replantio de ideias que, de fato, jamais morreram. Apenas não foram materializadas em grau suficiente para darem início a uma nova jornada institucional do Grande ABC – com os reflexos em todos os campos de atividade humana relevantes a quase três milhões de habitantes.  

Nutro especial expectativa de que novos tempos vão chegar e se tornarão de imediato uma lufada portentosa de esperança. Há quatro décadas o Grande ABC iniciou trajetória de queda econômica com reflexos sociais gravíssimos. A corrida reversa de Desenvolvimento Econômico ainda não se encerrou e não se encerrará facilmente. Afinal, transformações macroeconômicas não dão trégua. Justamente por conta disso que é indispensável reagir.  

Na sequência, reproduzo o texto de 15 anos atrás que ganhou o título de “Como escapar dos sete pecados capitais?”. A mensagem subliminar desse mergulho no passado é incentivar a organização de uma engrenagem de ponta, com agentes públicos e privados, do Estado, do Mercado e da Sociedade, para, finalmente, iniciar-se longevo processo restaurador.  

O melhor remédio contra o municipalismo do Grande ABC é o regionalismo do Grande ABC. Não fosse o Grande ABC municipalista por excelência e abusadamente cego às evidências comprovadas de ganhos sistêmicos gerados pelo conceito de multiplicar em vez de dividir, não teria sentido algum dizer que “o melhor remédio contra o municipalismo do Grande ABVC é o regionalismo do Grande ABC”. Uma frase que seria redundante, desprezível, segue sendo realidade assustadora. Agora, os sete pecados capitais: 

 LUXÚRIA DO TRIUNFALISMO 

Triunfalismo é a espetacularização de um Grande ABC que jamais existiu ou se existiu em alguma proporção à alardeada, há muito desapareceu. O mal maior da luxúria do triunfalismo é o anestesiamento de problemas que precisam ser diagnosticados e resolvidos, sob pena de se perpetuarem em camadas sobrepostas de gravidade econômica e social. 

Os triunfalistas de plantão atuam com a perspectiva de que a memória dos agentes sociais é curta. Preferem tudo menos pecha de derrotistas, que ajudam a orquestrar contra quem levanta bandeiras de comedimento. Sim, eles entendem que só tem a perder quem ousa colocar o dedo na ferida dos sofrimentos regionais. Atuam com a objetividade dos tolos: abraçam ideias que estão distantes demais da realidade porque acreditam que, em última instância, serão reverenciados como propagadores de positivismo que a comunidade recompensa com sentimento de gratidão. 

Não se dão conta os triunfalistas que, por mais que seja relativamente verdadeira a ideia de que a comunidade age sob instinto de preservação, inclusive material, nada resiste aos fatos. A mentira adocicada de hoje de que, por exemplo, o mercado imobiliário está exuberante, lastreada por estatísticas falseadas, vai fazer um acerto de contas com a verdade verdadeira algum dia mais à frente, quando o estoque de novas unidades precisar ser desovado ao preço de drástica redução na rentabilidade. Há regras na economia que jamais são contrariadas. Como a correlação entre oferta e demanda. 

Todos aqueles que entenderam que valia a pena esbaldar-se nas águas da manipulação, porque de alguma forma estariam a salvo de confrontos, acabaram se dando mal no Grande ABC. No período institucionalmente mais fértil do século passado, exatamente na última metade dos anos 90, mais aumentaram as deserções industriais, base da economia e suporte social dos sete municípios. O movimento que derivou da centralidade supostamente revolucionária do Fórum da Cidadania não abrandou a crueza de solavancos econômicos de uma região atirada às feras da globalização por um governo federal estúpido, para não dizer irresponsável. 

Aquela institucionalidade, de fato, era um copo vulnerável ao menor solavanco. Em vez de tim-tim de cristais se encontrando para saudar novos tempos de evolução entre agentes públicos, empresariais e sociais da região, ouviram-se estilhaços do esfacelamento industrial, setor nuclear da mobilidade social de uma região que a cada dia perde participação relativa e absoluta na riqueza nacional. 

Os prestidigitadores da luxúria institucional atuaram sempre sob a égide da escuridão do oportunismo combinada com o alheamento em relação às luzes do futuro. Eles seduziram reis, rainhas e plebeus com discursos desenvolvimentistas através de usos e abusos de estatísticas corrompidas por falsários. 

Hoje, vive-se a ressaca da luxúria do triunfalismo. Bacanais midiáticas dos desordeiros oficiais e privados são raras, em contraste com o fausto do passado recente. De vez em quando aparece um cenarista retardatário, desavisado sobre o ridículo do papel que ousa prestar, de repetir falsos artistas desalojados de tribunas que imundamente ocuparam, embora fossem tratados reverencialmente. Até que as máscaras caíram. 

 PREGUIÇA DO PROVINCIANISMO 

Berço da indústria automobilística e da indústria petroquímica brasileira, o Grande ABC tomou durante várias décadas o relaxante banho dos imortais. Sempre que o assunto era o despertar de um gigante chamado Brasil, apontava-se o dedo em direção ao Sudeste da Região Metropolitana de São Paulo onde, à sombra da Capital, despertava um capitalismo moderno, de ascendente classe trabalhadora. Um cenário perfeito para embalar a preguiça institucional, entendida como permanente propensão para desconsiderar tudo que pudesse exigir cuidados no corpo esbelto, bem nutrido e ágil dos sete municípios. 

O encantamento com as próprias e bem distribuídas medidas econômicas e sociais, que davam saltos de prosperidade, conduziu o Grande ABC ao espreguiçamento contínuo. Planejamento urbanístico? Bobagem. Disciplina na ocupação e uso do solo? Para quê? Espichamento do olhar em direção a outros territórios nacionais e internacionais que pudessem indicar novos modelos de desenvolvimento que colocassem em risco a região? Qual nada. O Grande ABC se sentia imperialmente inexpugnável. Também, como ao menos sugerir que sustentado por logomarcas preciosíssimas como General Motors, Ford, Volkswagen, Toyota, Saab-Scania, Cofap, Brastemp e tantas outras haveria tempo, espaço e disposição para sair do bem-bom de venha-a-nós-ao-nosso-reino? 

A explosão de negócios que mais e mais centralizavam baterias no Grande ABC era motivo mais que suficiente para dar um pontapé nos fundilhos de qualquer incômodo com o futuro. Quem haveria de superar o Grande ABC na sede estrepitosamente incontrolável de crescimento? Ainda mais que por aqui se fabricavam o primeiro, o segundo e o terceiro sonho de consumo dos humanos — os veículos automotores, claro. 

Mas a canoa acabou virando. Não totalmente, é claro, porque o Grande ABC ainda produz dois de cada 10 veículos de passeio e seis de cada 10 veículos pesados. Mas o suficiente para assustar. Algumas logomarcas que lustravam fachadas de prédios gigantescos que geravam emprego, impostos e mobilidade social sumiram com as próprias fábricas. Várias cederam espaço a supermercados e hipermercados. O mapa do Brasil de produção automotiva e petroquímica foi democratizado à custa de canibalizadores créditos baratos e guerra fiscal. O mundo, aliás, descobriu a força automotiva. Agora, chineses e indianos estão nas paradas de sucesso de montagem de veículos. Ameaçam europeus ocidentais e devem chegar às periferias do planeta com preços imbatíveis de mão-de-obra excedente e tributos comedidos. 

A preguiça do provincianismo não é um mal generalizado que ataca todas as instâncias de poder no Grande ABC. No setor privado, pequenas e grandes indústrias foram sacudidas há muito tempo por novas nuances de produção. Mas o setor público, que vive de arrecadar impostos, se deixou dominar pelo sonífero da insensibilidade. Ignorou completamente o que passava além-torres de Executivos e Legislativos. Até hoje, na quase totalidade dos casos, o Poder Público não percebe as razões do esfriamento das caldeiras de produção dos dois maiores setores industriais da região. Ou, se as percebe, não consegue livrar-se da camisa-de-força do improviso associado à concorrência doméstica. 

O provincianismo se projeta em pequenos e grandes aspectos. Desde a demora para estabelecer rede regional de tratamento tributário que atraia novos investimentos sem raquitizar os já instalados até a ausência de senso prático de reconhecer-se, o Poder Público, pouco preparado para a estratégia de competir internacionalmente. Para isso, teria de admitir limitações e dar espaço a especialistas de organizações que fizeram fama exatamente porque são antiprovinciais. Ou seja, enxergam o mundo por completo, o mundo plano, como ainda recentemente um economista definiu o processo de globalização. 

O balzaquiano Grande ABC exibe flacidez que já não o torna centro de atenção do País. Ainda mais porque segura a barra da saia da Capital. Uma recauchutagem é trabalhosa, provavelmente não reencontrará o viço da juventude que se foi. Mas, pelo menos, evitaria a velhice precocemente imposta pela competitividade internacional. 

 IRA AO REGIONALISMO 

Uma regra da política partidária enseja que quem parte e reparte e não fica com a maior parte, é bobo ou não entende da arte. No caso do território do Grande ABC, dividido em meados do século passado em sete pedaços, partiram e repartiram de tal maneira que quem ficou com cada parte se sentiu realizado. Os grupos políticos e emancipacionistas que multiplicaram o Poder Público na região esbaldaram-se com a nova ordem territorial. 

Independentemente de vantagens e desvantagens da repartição do poder na região, numa disputa de argumentos que consome toneladas de paciência e paixão, o fato é que a unidade original foi para o espaço. E como a regionalidade é indissociável a qualquer um dos pedaços do mosaico municipal, o resultado é desastroso. 

Há razões de sobra para investimentos no Grande ABC. No terciário, que envolve comércio e serviços, a condição de conglomerado urbano de 2,5 milhões de habitantes e o quarto potencial de consumo do País pesa muito na hora da decisão. Um supermercado, um shopping, uma franquia de fast-food, uma nova revendedora de veículos, qualquer coisa que lembre consumo, olha-se com olhos arregalados para o Grande ABC. Estudos de marketing conduzem a conclusões regionais. Há população específica do Município que vai sediar o empreendimento, mas o entorno é visto como potencial definidor do negócio. 

A regionalidade não está apenas no potencial de consumo. A mão-de-obra pesa na hora dos investimentos, principalmente industriais. A cultura de chão de fábrica encurta a distância entre o dinheiro aplicado num negócio e a rentabilidade. Mesmo com custo superior em relação ao restante do País, a mão-de-obra regional faz diferença se qualidade for quesito indispensável. Qualidade, como se sabe, advém de uma série de fatores. Principalmente da cultura manufatureira, que o Grande ABC tem de sobra. 

A dualidade do Grande ABC econômico e do Grande ABC institucional manifesta-se na regionalidade inerente das forças de mercado e no municipalismo retrógrado da gestão pública. O Consórcio Intermunicipal de Prefeitos já completou 15 anos mas não encontrou fórmula para dar um nó górdio na disputa pelo estrelato. Comandado em regime de revezamento de 12 meses, o Consórcio é um convite irrecusável ao show de uma nota só: enquanto todos os holofotes se dirigem ao titular de plantão, os demais assistem quase que passivamente, embora dissimulem união. 

Cada um dos prefeitos, inclusive o titular de plantão, está de olho mesmo é no território municipal que o elegeu e sobre o qual tem sob influência grupos políticos que, na maioria dos casos, embalam os próximos objetivos. Talvez fosse injusto apontar Luiz Tortorello o mais infatigável representante da tipologia que domina a cena político-institucional do Grande ABC. Tortorello, morto em dezembro de 2004, colocava São Caetano em primeiríssimo lugar. É provável que tenha sido apenas o mais transparente entre os contemporâneos de poder. 

Paradoxalmente, foi um dos maiores incentivadores da criação do Consórcio Intermunicipal. Mas logo percebeu que o jogo coletivo era uma farsa. Mais tarde, ninguém superaria o empenho de Celso Daniel, extraordinário bailarino de todos os salões municipais da região. Até o dia em que se deu conta que romanceava demais as expectativas de ajustes compartilhados. Voltou-se então para a Santo André que o elegera pela segunda vez, antes da terceira. 

Extirpar a ira ao regionalismo do autárquico municipalismo é desafio para cirurgiões políticos, raros no quadro nacional. Para que seja possível acreditar que acabará a estultice de ignorar-se fronteiras municipais tão historicamente justapostas, como as que justificam inclusive a denominação Grande ABC, é preciso passar pelo desfiladeiro dos ideais metropolitanos. Entretanto, deputados federais e estaduais paroquiais como prefeitos, como vereadores, como secretários municipais, como lideranças empresariais, como lideranças sociais, só pensam mesmo naquilo — no pedaço administrativo que podem dominar. 

 GULA DO ESTRELISMO 

O pior do estrelismo não é o narcisismo de quem procura atrair atenções de forma voraz, mas os efeitos que essa antiga porção reversa de pó-de-pirlim-pim-pim precipita. Sim, porque pior mesmo que o espírito indomável dos indivíduos travestidos de ambições irrefreáveis são os potenciais construtores do futuro que, discretos, preferem se afastar de cena. Contra os narcisos, os franciscanos. Com os narcisos, os aduladores. 

Isso significa que na exata proporção em que a gula do estrelismo se espalha ruidosa mas vazia de conteúdo, os bem-comportados candidatos a solucionar problemas sem recorrer a malabarismos de visibilidade se acautelam com a possibilidade de retaliações geralmente veladas. Não é difícil distinguir quem consegue aglutinar companheiros de mudanças de quem transmite a sensação de que, ao se olhar no espelho, julga-se imprescindível. Enquanto o primeiro é da turma do “nós ganhamos, nós empatamos, nós perdemos”, o segundo é decididamente do time do “eu ganhei, nós empatamos e vocês perderam”. 

Os narcisistas estão por todas as partes. Alguns têm vida longa porque falta aos interlocutores senso crítico para opor-lhes resistência restauradora ou sobra pragmatismo de quem prefere abandonar a empreitada. Ou seja: eles seguem livres e soltos porque caricaturas lhes dão suporte representativo, enquanto opositores afastam-se do cálice da embromação. 

Dessa forma, erguem-se duas muralhas gêmeas de consequências sociais e econômicas. Os que permanecem ao lado dos fazedores de marolas se tornam medíocres numa incubadora de maldades, ao assimilar todos os vícios de linguagem e de atitude do comandante. Os desertores praticamente adubam o terreno rasteiro dos prevaricadores, porque temem por contaminação. 

A gula do estrelismo é invasiva e propagadora. Forma caldo de cultura que referência outras organizações, influenciando usos e costumes. Ao longo de décadas o Grande ABC chegou ao ponto máximo de endeusamento dos inúteis. Valem mais a etiqueta, o corte elegante do vestuário, a gravata rigorosamente na moda, os gestos cautelosamente medidos, o tom de voz neutro, as frases decoradas, a logomarca corporativa, tudo isso num festival politicamente correto que parece saído desses manuais que os computadores vomitam metodicamente. 

É claro que esse modelo de atraso com aparência de modernidade não é obra do acaso. Mas também há estrelas que não pontificam pela forma de vestir, pelos modos com que falam, pelos gestos mais refinados. Há espécimes menos rebuscados, mais populares, descuidados até no vestir e no falar. O que une os dois tipos é a propensão ao proselitismo vazio, às promessas que jamais se cumprem, a individualidade usurpadora do coletivismo, o coletivismo subordinado ao individualismo. 

A gula do estrelismo não é, portanto, um desenho linear. Há casos em que detentores da patologia são inequivocamente competentes. São estrelas narcisistas porque a dimensão do mundo se esgota nos contornos do próprio físico. Usam o coletivo como plataforma de embarque para um novo mundo de interesses pessoais e profissionais. Preferencialmente longe do provincianismo do Grande ABC. Arremetem em direção a instituições de âmbito estadual e federal com a volúpia dos pecadores. São casos especiais de estrelismos que se cansam da plateia doméstica que os reverencia. Querem mais e mais o que, no fundo, no fundo, é o mesmo do mesmo, porque a gula do estrelismo é endêmica. 

 COBIÇA DO CORPORATIVISMO 

Corporativismo é a consagração do coletivismo de iguais ou semelhantes, doutrinado a defender interesses próprios, pouco se importando se o que lhe é favorável cabe no figurino da sociedade. Corporativista foi o movimento sindical liderado pelo então operário Lula da Silva, de ressonância superavaliada por intelectuais desatentos, que viram naquela rebelião contra o capital desmedidamente egoísta o que nem mesmo o próprio comandante daquela iniciativa, e depois presidente da República, foi capaz de ratificar. 

Sim, os intelectuais viram na revolta de chão de fábrica dos metalúrgicos de São Bernardo a prova provada de uma mobilização política que colocaria o Grande ABC no topo do engajamento reformador. Bobagem: os metalúrgicos jamais deixaram de pensar e agir exclusivamente com interesses próprios. Seus objetivos não ultrapassavam os limites das indústrias. Era o trabalho maltratado opondo-se ao capital abusado. Quem interpretou o movimento além-muros industriais idealizou uma empreitada provavelmente ramificada nos tempos românticos de um socialismo bolchevique que já começava a dar sinais de fadiga de material. 

Exemplo irrebatível de que a cobiça do corporativismo sindical se opunha aos propósitos da população: os usuários de veículos, vítimas preferenciais de sobrepreços repassados por conta das conquistas da categoria combinados com o protecionismo do mercado. Os custos nacionais em forma de privilégios sindicais, de excesso tributário e de desinteresse em investimentos em modernização, num período em que a Lei de Reserva de Informática excomungava qualquer elemento que tivesse a possibilidade de imprimir novos processos de produção, tornaram os metalúrgicos classe especial no espectro trabalhista. 

Entretanto, nem tudo que é bom dura para sempre. A abertura econômica no começo dos anos 1990 foi um torpedo. Desmantelou bases sindicais, reduziu a pó milhares de empregos industriais e descentralizou a produção com novos investimentos internacionais, beneficiados por um câmbio ultrafavorável e empréstimos subsidiados do Estado. 

A cobiça do corporativismo não se circunscreveu às classes trabalhadoras mais organizadas. Empresários deitaram e rolaram na disputa cabeça-a-cabeça por vantagens oficiais de um Estado dirigista e interventor. O mercado fechado era um convite irresistível a acordos informais de cartéis que impunham preços que mais lhes convinham, protegidos por um governo controlador de planilhas que, de fato, se traduziam em atentados à competitividade internacional. 

Durante muitas décadas de substituição de importações o Brasil estimulou a concorrência preguiçosa principalmente entre grandes corporações que patrocinavam um jogo de faz-de-conta de disputa pelo mercado. Por isso, em certos momentos as reivindicações trabalhistas viraram jogo de cena, ou um ritual tão previsível como o verão depois da primavera. Novos custos de mão-de-obra e das chamadas conquistas sociais dos trabalhadores eram repassados aos consumidores dos produtos. 

Principalmente nas montadoras e autopeças, as obrigações do Estado nas áreas de saúde, educação, transporte e alimentação foram arrancadas das empresas em campanhas salariais. 

A cobiça do corporativismo deu certo até o dia em que o Brasil resolveu entrar na guerra de guerrilhas da globalização, no início dos anos 1990, primeiramente com Fernando Collor de Mello. 

Com a chegada de Fernando Henrique Cardoso e a abrupta política de valorização da moeda nacional, de artificial cotação superior ao dólar, e a redução drástica de alíquotas alfandegárias, não sobrou pedra sobre pedra em vários setores industriais. Só nos anos 1990 o Grande ABC perdeu 100 mil empregos industriais com carteira assinada. Era a gordura dos tempos de mercado fechado que a rápida e insensível lipoaspiração da abertura econômica retirava de estruturas industriais pesadíssimas e tecnologicamente ultrapassadas. 

Imaginar que o gene da cobiça do corporativismo está concentrado apenas nos protagonistas do capital e do trabalho é deixar escapar pela fresta da desatenção situações semelhantes em outras áreas, inclusive sociais. Prevalece a seletiva mensagem de que ao cuidar apenas do interesse de determinado agrupamento econômico, social ou político, está-se resolvendo o problema da comunidade. Balela pura. A saída é o portal do capital social, junção de diferentes esferas comunitárias. Quem amarra o guizo da responsabilidade social no pescoço do gato arredio do corporativismo? 

 AVAREZA DO APARTHISMO 

A ocupação demográfica do Grande ABC acompanhou a lógica do desenvolvimento econômico acelerado com o revolucionário desembarque das montadoras de veículos. Os saltos de ocupação territorial por hordas de migrantes de um País especializado em improvisação tornaram a geografia da região constante aperfeiçoamento do aparthismo social. Os imigrantes europeus e asiáticos que chegaram nos primeiros anos do século passado e ocuparam espaços centralmente mais urbanos beneficiaram-se fortemente da especulação imobiliária que a industrialização pós-montadoras incentivou com a correnteza migratória. 

A avareza do aparthismo social não é fenômeno tipicamente do Grande ABC, mas, impressionantemente, essa segregação de classes aqui se solidificou em estreita comunhão com o dinamismo econômico de três décadas e o afrouxamento das duas décadas seguintes, num ciclo que se iniciou em meados do século passado. O Grande ABC que se tem hoje é densamente periférico na maioria dos sete municípios. O contraponto da prevalecente classe média de São Caetano está no domínio da classe operária de Diadema. Em Santo André, São Bernardo, Mauá e Ribeirão Pires vigora a rígida separação territorial de ricos, remediados e populares. 

No conjunto, se concentrados num único megamunicípio de 2,5 milhões de habitantes, o Grande ABC social é formado de manchas urbanas claramente distintas. São nesgas de bem-aquinhoados materialmente, uma parte mais visível de remediados e o avanço incontrolável de pobres e miseráveis. Como a maioria dos municípios brasileiros. A diferença é que a interface entre as classes sociais é reticente, praticamente imperceptível. Da mesma forma que o corporativismo funcional e institucional mantém agentes públicos, privados e sociais distantes de interatividade, no campo social vive-se os respectivos microterritórios e, mesmo assim, na maioria dos casos, sem praticamente nada que aproxime para valer os iguais ou semelhantes. Um ou outro movimento localizado contra casos de criminalidade ou de arruaças noturnas de frequentadores de botequins dá alguma ideia do que seja vida comunitária. A regra é o isolamento em microcosmos sociais. O aparthismo no aparthismo social. 

Tivesse o Grande ABC algum resquício de reformismo social e político que observadores tão pretensiosos quanto afoitos chegaram a sugerir a reboque do movimento sindical, as manifestações de chão de fábrica teriam se reproduzido no âmbito social. Houvesse de fato coesão entre ambições profissionais e demandas sociais, por que não imaginar que os mesmos metalúrgicos que reformataram as relações trabalhistas na região não pudessem interferir como cidadãos no desenho de municípios menos desajustados, inclusive na destruição de parte dos mananciais? 

O aparthismo social do Grande ABC de ricos, remediados e pobres é uma bomba-relógio demarcada por índices de criminalidade. Nos últimos 15 anos de desindustrialização ensandecida muitos representantes da classe média foram rebaixados ao proletariado e muitos proletários desceram as escadas da pobreza. 

Os ricos tradicionais, na maioria os primeiros a chegar ao Grande ABC de terras baratas e sobre as quais fizeram fortuna, também contabilizam perdas mas se mantêm no topo da materialidade e, principalmente, influenciam o poder. Há um e outro novo rico em cada pedaço municipal da região, egressos na maioria da administração pública e de concessionárias de serviços públicos. Eles tentam se ajeitar entre os ricos tradicionais, que geralmente os repelem por falta de patente histórica, tanto quanto tentam se afastar dos classe média que se esfalfam para não ser atirados às feras do proletariado. 

O aparthismo social do Grande ABC, portanto, tem componente pouco comum no Brasil. A disputa para pelo menos sustentar posições alcançadas nos tempos áureos de mobilidade social está longe de se manter discreta e elegante num território que conheceu em espaço de tempo singularmente curto, de meio século, o céu do esplendor e o inferno da implosão econômica. Os números grandiloquentes gerados por 2,5 milhões de habitantes entusiasmam investimentos de comércio e serviços de redes nacionais e internacionais. Entretanto, metabolizados em traduções por habitante e, principalmente, se observados sob a ótica da realidade prática de periferias cada vez mais infladas e de reversão de ascensão social, indicam que o aparthismo deverá acentuar-se. A terapêutica indicada para esses casos, um grau elevado de cidadania, dá sinais de vitalidade de fato apenas em Diadema, homogeneamente popular, politicamente amadurecida e culturalmente surpreendente. 

 INVEJA DO GATABORRALHEIRISMO 

Complexo de Gata Borralheira é o Grande ABC diminuir-se em todos os campos de atividade pela vizinha Capital. Um sentimento regional que resulta da mistura de admiração e inveja. A recíproca não é verdadeira. A Capital, meca dos serviços de valor agregado, do mundo fashion, do entretenimento, do sistema financeiro, olha o Grande ABC com desprezo. Exceto quando os 2,5 milhões de consumidores estão no radar da rentabilidade. 

São inúmeros os exemplos de situações que provam e comprovam que o Grande ABC não se ama como deveria e que inveja São Paulo além da conta. Formandos da região preferem festa de diplomação na Capital, apesar da distância, de preços mais salgados e de ambientes nem sempre mais adequados. Tudo pelo status de constar do álbum de formatura o endereço paulistano. 

Restaurantes da Capital são sempre melhores. Mesmo que eventualmente não sejam melhores. Almoçar e jantar na Capital é mais chique. Assistir à peça de teatro em São Paulo em vez de optar por exibição num dos municípios da região também dá significado especial à programação. 

O incômodo da inveja do gataborralheirismo é tão pronunciado no Grande ABC que basta mencioná-lo para moradores mais tradicionais reagirem. Na maioria dos casos não passa de hipocrisia, porque eles são os primeiros a se deslocar até a Capital. Recente anúncio de página inteira em revista dedicada ao setor de refeições coletivas estampou apenas São Paulo como endereço de uma tradicional empresa cuja área industrial segue em Santo André — a De Nadai Alimentação. Um dos sócios do empreendimento, Sérgio De Nadai, que consta da relação dos poucos novos-ricos da região, entretanto, desfila frases de paixão e fidelidade a Santo André em entrevistas aos veículos locais, embora permaneça silente sobre as origens da companhia quando eventualmente fala a interlocutores paulistanos. 

Do ponto de vista negocial, a decisão da De Nadai Alimentação é absolutamente correta e está longe de inaugurar um comportamento corporativo em que a racionalidade de marketing é regra. É tradição de empreendedores do Grande ABC omitirem publicamente a origem de seus negócios quando ganham novos mercados. A própria comunidade regional discrimina as empresas locais quando confrontadas com empreendimentos principalmente da Capital. Um empreendedor de informática com empresa na Via Anchieta, território de São Bernardo quase divisa com a Capital, aposentou o telefone de contatos comerciais do Grande ABC que rivalizava atendimento com a central telefônica da Capital porque a quase totalidade das ligações era direcionada ao aparelho paulistano. 

O pior da inveja do gataborralheirismo é negar que a patologia existe. Ou, então, numa iniciativa que já se provou catastrófica porque foi levada a cabo sem ciência e competência, procurar negar a evidência com eloquência ufanista. A fonética proposital da frase é uma maneira de marcar bem na memória a estupidez de tentar curar a enfermidade com tratamento tópico. 

Certo mesmo é que qualquer iniciativa para sufocar o sentimento de inveja da Capital precisa passar por reformas estruturantes, por medidas sistêmicas. Marketing rastaquera como já colocado em bancas de comércio de bugigangas triunfalistas só agrava a realidade. Provavelmente o Grande ABC só se respeitará de fato, no sentido mais amplo de cidadania, no dia em que assumir para valer, sem subterfúgios, que se escraviza culturalmente ao encarar a Capital vizinha como suprassumo de virtudes inatingíveis. 

A partir daí, descobrirá que é possível encontrar nichos econômicos muito mal-servidos pela Capital e também constatar que a mesma vizinha badalada carrega problemas sociais mais insolúveis do que os que incomodam o Grande ABC, entre outros motivos porque são dimensionalmente maiores. 

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