Imprensa

Veja Diário do Grande ABC de
nove meses de reestruturação (12)

  DANIEL LIMA - 18/03/2022

Estamos encerrando esta série que contou detalhes do que pretendia e o que realizou este jornalista à frente do Diário do Grande ABC, entre 2004 e 2005.  

A reprodução do Planejamento Estratégico Editorial mostrou aos leitores que aquelas prerrogativas conceituais não se prendiam exclusivamente à corporação propriamente dita.  

Em cada parágrafo respirou-se regionalismo, cláusula pétrea do jornalismo que fundamos em 1990, à frente da revista impressa LivreMercado – e que antes, no próprio Diário do Grande ABC, exercitei tanto como Editor de Esportes, Editor de Economia, além de espécie de Chefe de Redação durante 15 anos seguidos.  

Não será necessário explicar o que se segue porque o que se segue se autoexplica. Não serei redundante.  

O livro “Na Cova dos Leões”, que lancei em 2006, menos de um ano após deixar o Diário do Grande ABC, estendia nossa preocupação com o futuro da região.  

O LIVRO 

“Na Cova dos Leões” deve ser entendido como testemunho fiel das circunstâncias que vivi no comando da redação do Diário do Grande ABC entre 21 de julho de 2004 a 21 de abril de 2005.  

Entretanto, reflete 40 anos de intensa dedicação ao jornalismo quase integralmente vividos nessa região de 2,3 milhões de pessoas e, apesar dos percalços, o terceiro maior potencial de consumo do País.  

Em realidade, comecei um pouco antes de 21 de julho a jornada no Diário. Durante um mês, antecedendo desembarque na redação, exerci a função de ombudsman, com análise diária do produto.  

Diferentemente do modelo que me antecedeu, do Conselho do Leitor, que expunha publicamente a cada edição de domingo as mazelas semanais da redação, preferi boletins rigorosamente para consumo interno porque a fragilidade da autoestima dos jornalistas chegou ao ponto de que não poderiam pagar isoladamente o preço de problemas estruturais.  

COLUNA CONTEXTO  

Foi a partir da função de ombudsman que passei a produzir a coluna “Contexto”, espaço onde fiz imprimir pensamentos, propostas, ideias e, por que não, desabafos. 

Se fosse contar por que passei por fase de decantação durante um mês, até que se definisse minha contratação, daria para produzir outro livro. Que um dia, no momento oportuno, escreverei. Seria espécie de “Na Cova dos Leões II”.  

Talvez a versão número três fosse apropriada para explicar as circunstâncias de minha demissão. Mas isso também fica para depois. 

Durante os nove meses de Diário do Grande ABC escrevi seguramente mais de 1,5 milhão de caracteres, dos quais quase 900 mil para “Contexto”. Pouco mais de 200 mil estão neste livro.  

SACRIFÍCIO NECESSÁRIO  

Os demais foram sacrificados principalmente por causa do planejamento espacial desta obra, outros, em menor quantidade, não reuniam o perfil adequado para reproduzirem-se no formato que se segue e cujo escopo é a imposição de durabilidade temporal. 

Além de diretor de Redação, de pauteiro, de editor-chefe, de colunista, durante aqueles meses também exerci funções das quais jamais abrirei mão como jornalista: fui repórter o tempo todo.  

Nesse ponto, e faço essa revelação sem nenhum sentido crítico àqueles que se interpuseram na tentativa de me dissuadir de escrever, encontrei firma resistência de quem compreendia que deveria abdicar dos textos em favor de intermináveis, improdutivas e enfadonhas reuniões. Ou seja: queriam porque queriam me prender à cova dos leões de mesmices que se fecham em si mesmas. 

Também durante o período de gestão da redação do Diário do Grande ABC mantive as funções de diretor-executivo da revista LivreMercado, o bem mais precioso de qualidade analítica já produzido na imprensa regional. LivreMercado é uma massa crítica indispensável para quem quer compreender o Grande ABC do século passado e descomplicar as interrogações deste novo século. 

EMBRUTECIMENTO  

Costumo dizer que LivreMercado é a paixão maior de minha carreira, porque me ensinou a fugir do emburrecimento e do embrutecimento do jornalismo diário.  

Aliás, sobre essa dupla carga contaminadora que explica em larga escala os desvãos de qualidade, sensibilidade, profundidade e lucidez do jornalismo brasileiro, faço questão de creditar ao amigo e jornalista Mauricio Milani o alinhamento dos adjetivos. Ao lhe dizer numa conversa informal que o jornalismo diário emburrece, imediatamente ele, de perspicácia nem sempre captada por egos exacerbados, proferiu: “e embrutece”. Estonteante.  

Costumo dizer também que escrever tem significado terapêutico para mim. Pode, em contraposição, provocar enxaqueca, taquicardia, pressão alta e outras patologias em terceiros em débito com aquilo que considero inseparável a quem respira estes ares: a busca da regionalidade num Grande ABC provinciano nos costumes, autárquico  no gerenciamento público, labiríntico na definição de pressupostos de planejamento estratégico, discriminador nos relacionamentos sociais – reprodução do próprio País em que vivemos, com a agravante de que seguramente protagonizamos os 20 piores anos de nossa história de mobilidade social na esteira da chegada das montadoras de veículos.  

OBRA DO ACASO  

“Na Cova dos Leões” é uma obra do acaso. Não me imaginei naqueles meses estar gestando novo libro em forma de coletânea. Desconfiei de que pudesse fazer a troca da roupa esportiva molhada de suor por um terno e gravata apropriados para o cumprimento da agenda social quando decidi reler alguns artigos que recheiam uma das mais de três mil pastas que ocupam quase que totalmente o sótão de minha residência.  

A imagem de material esportivo de jogging substituída por roupa social é proposital porque o jornalismo impresso diário não passa, aos olhos da maioria, de vestimenta de atleta que deve ir para a máquina de lavar roupa imediatamente após a malhação física.  

Já os livros lembram indumentárias que, bem cuidadas, só são usadas em situações socialmente mais nobres e, portanto, muito mais longevas.  

Aliás, e sem que isso pareça descarte à importância dos produtos em papel jornal, base de minha formação profissional, um dos núcleos editoriais de LivreMercado é procurar aprofundar e esticar o máximo possível a vida útil de cada informação e análise publicadas, preenchendo, portanto, o vácuo de patológica brevidade dos jornais.  

TROCANDO DE ROUPA  

Creio que os leitores não se frustrarão com este livro. Não há maquiavelismo oportunístico a caracterizá-lo. Apesar da gênese editorial, não se está comprando gato de jornalismo diário supostamente descartável por lebre de certo rebuscamento de conceitos.  

Ou seja, não está em operação uma espetacular manobra que converte em glamour de sofisticação um usuário de roupa social que mal se desvencilhou do calção, camiseta, tênis e meia. Não se está enfiando apressadamente uma vestimenta nobre num corpo suarento que não se deu nem ao trabalho de uma chuveirada. 

“Na Cova dos Leões”, portanto, não é o requintamento oportunístico de uma sequência de artigos publicados inicialmente em jornal e que de jornal não passara porque de jornal teria todos os genes.  

MAIS DURABILIDADE  

O sentido é exatamente oposto: imantar na lustrosidade das páginas de um produto de maior durabilidade e sofisticação material um legado de regionalidade que, acreditamos, poderá servir de referência e estímulo a quem estudas o Grande ABC com mais profundidade.  

Aliás, minhas obras anteriores “Complexo de Gata Borralheira”, “Meias-Verdades” e          “República Republiqueta” estão compromissadas come esses mesmos pressupostos.  

A indagação central voltada para o título deste livro, respondo sem a menor preocupação de ferir suscetibilidade de quem passa a vida em redações de veículos impressos ou eletrônicos cuja relação com o prazo de entrega tipo fast-food do produto chamado informação está acima de tudo: esses locais que geralmente se consideram o quarto poder, sejam quais forem as dimensões geográficas, econômicas, políticas, sociais e culturais em que se encontram, são, na maioria dos casos, apenas correias de transmissão de interesses de fontes de informação que sequestraram a pauta.  

PIRATARIA EXTERNA  

Vou traduzir o que parece um raciocínio esnobe: as redações, principalmente de jornais diários, são, em larga escala, pontos preferenciais em que os piratas econômicos, sociais, políticos e culturais atracam barcaças de interesses que parecem legítimos a mentes e olhos descuidados, supostos reprodutores de uma maioria silenciosa.  

Por isso que me senti na cova dos leões no Diário do Grande ABC, e jamais em tempo algum, passei pela mesma sensação em 16 anos de LivreMercado.  

A diferença entre uma situação e outra é que peguei andando o bonde do Diário do Grande ABC e, embora fizesse de tudo para me ajeitar na guerra de guerrilhas por espaços, tenho sérias dúvidas se de fato consegui.  

Já o bonde de LivreMercado se pauta por um conjunto do que chamo de cláusulas pétreas editoriais às quais recorro persistentemente par a impedir que minorias barulhentas e interesseiras de profanadores de projetos e propostas de grandes transformações da sociedade tomem o leme.  

TOMANDO CONTA  

É verdade também que, em contraposição à realidade de as redações se tornarem covas de leões de desfechos dissociados da mensagem bíblica, não faltam no cenário nacional empresários da mídia que sabem exatamente o que estão patrocinando.  

Conluios se estabelecem geralmente por meio de medidas táticas que, mais à frente, para estupefação de leitores mais atentos, se desmancham como bolhas de sabão. Dessa forma, por algum tempo, por tempos intermitentes, ou quase sempre, os animais oportunistas acabam por devorar a relevância da função do jornalismo, dificultando quando não impedindo a oxigenação da sociedade.  

O que se segue neste livro, numa contagem cronológica a que me decidi para que os leitores pudessem compreender mais apropriadamente o quanto procurei resistir numa das muitas covas de leões do jornalismo brasileiro, é uma sequência de impressões, certezas, sentenças, desconfianças, desânimo, expectativa e tudo o que move minha vida profissional numa região que aprendi a amar de um jeito tão diferente que alguns maledicentes confundem com derrotismo.  

Pobres coitados, porque eles sim, individualistas, procrastinadores da cidadania, sabotadores do regionalismo, aos poucos vão sendo desmascarados como reles triunfalistas de ocasião.  

ATESTADO PÚBLICO  

“Na Cova dos Leões” é um atestado público de compromisso, mais um, com o futuro do Grande ABC. Não tenho pretensão à unanimidade. Muito pelo contrário: aprendi a conviver com o ônus de posicionamentos completamente conflitivos com o lugar-comum que resiste a longas e penosas décadas de submissão da mídia pelas forças corporativas.  

Tenho esperança de que novas lideranças estão surgindo e hão de conquistar um regionalidade que não seja utopia dos teimosos. 

Por fim, um convite para a leitura de “Na Cova dos Leões” siga preferencialmente a ordem numérica das páginas que, por sua vez, é a ordem cronológica dos textos originalmente publicados em “Contexto”. Seguir a sugestão implica em pelo menos duas garantias: o leitor incorporará o estado de espírito do autor em meio ao cotidiano desgastante que marcou aquele período de trabalho e não deixará escapar a contextualização de fatos cujos eventuais desenlaces estão presos aos antecedentes.  

Para completar a compreensão das circunstâncias que envolvem esta obra, aqueles nove meses foram delicadamente sensíveis para mim na medida em que convivi com os primeiros tempos de uma dor eternamente irreparável – o fim da vida material do homem para o qual sempre olhei com admiração e que me serviu de modelo de coragem. Meu pai, seu Gabriel de muitas profissões e paixão alvinegra, foi-se no começo da noite de 18 de julho de 2004, poucas horas antes de minha programada chegado ao Diário do Grande ABC, adiada para três dias depois.  

EQUIPE DE VALOR  

A compensação – se é possível falar em compensação para algo que mantém insuportável vacuidade em minha vida – veio na forma de relacionamentos com os jornalistas do Diário. Exceto alguns poucos que não compreenderam a relevância da missão de produzir insumos regionais definidos num minucioso Planejamento Estratégico Editorial, a quase totalidade das lideranças setoriais de redação se mobilizou de forma comovente para oferecer o melhor possível aos leitores. 

Diferentemente de chefetes de redação que se travestem de cães perdigueiros a acompanhar todos os passos varejistas de subordinados, transformei minha estada no Diário numa ação de evangelização pró-regionalidade, em vez de lhes impor presença asfixiante no cotidiano de produção editorial. 

Tínhamos sim todas as tardes um encontro marcado de um hora, uma hora e meia, para debater o jornal que circulara no dia, o que circularia no dia seguinte e, também, questões que demandavam médio e longo prazo. 

Uma histórica reunião fora dos limites territoriais da empresa, eternizada em forma de CD, é espécie de comprometimento com o produto chamado informação.  

Do dia-a-dia do jornalismo emburrecedor e embrutecedor não tenha saudade alguma. E olhem que não me submeti à ordem unida de permanecer o tempo todo na redação. Preferi um cantinho da Editora Livre Mercado, então no mesmo edifício-sede do Diário, longe do burburinho e da possibilidade de ser interpretado como capataz. 

Leia mais matérias desta seção: