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Esportes

DANIEL LIMA - 08/05/2025

Mexi e remexi, pintei e bordei até que encontrei o esqueleto de um trabalho ao qual não atribui ainda uma marca que honre a camisa, mas que, preliminarmente, poderia ser chamado de “Manual para você entender o jogo coletivo do futebol”. Ou seria melhor algo como “identifique um time de futebol perfeito”?. Faça a escolha depois de consumir o que se segue.

É sobre isso que vou escrever hoje, certo de que o leitor não se sentirá traído. Ao contrário do que imagina, não se trata de temática qualquer. Acho que valerá a pena fugir neste dia de tema mais árido, como comumente destrinchamos. Regionalidade, principalmente.

Pelo menos para mim,  que comecei a vida profissional no Interior do Estado por causa do futebol e que, no Diário do Grande ABC, durante muitos anos, exerci também a função de Editor de Esportes – antes de agarrar a economia pelo colarinho de nova paixão profissional, sem esquecer da anterior, claro.

MERITOCRACIA SEMPRE

Vou repetir a pergunta da manchetíssima de hoje: “Posse de bola dissuasiva: você sabe o que é isso?”. Quem não está nem aí com o futebol provavelmente não se sentirá disposto a consumir estas linhas. Acho que estará cometendo equívoco. Futebol reúne carga pesada de metáforas para quem entende que bola rolando não é apenas bola rolando.

Futebol é uma das paixões de minha vida não só porque tenho time e tenho minha relação sensorial e sentimental aguçada quando a bola rola, mas também porque futebol é pedagogia pura. Para toda a vida.

A meritocracia, meu roteiro, encontra no futebol provavelmente a legitimidade mais sólida a cultivar. Por mais tropeços que eventualmente os árbitros cometam, no fim das contas o futebol premia sempre os melhores. Mesmo quando os melhores não pareçam melhores diante da paixão cega. Campeão por acaso não existe.

RACIONALIDADE

Nem uma das melhores seleções brasileiras de todos os tempos, aquela de 1982, que perdeu para os italianos, voltou sem o título por simples tramoia do destino. O entrecruzamento de fatores que decidem uma partida de futebol e um título de competição não permite conclusões precipitadas e tampouco apaixonadas como verdades absolutas.

Diria sem medo de errar que é mais fácil entender o que muitos chamam de intolerância política ou, como disse ainda outro dia o ex-prefeito Paulinho Serra, “polarização” dos extremistas à direita e à esquerda, quando se tem o futebol como referencial. E isso desde que futebol é futebol.

Caímos na rede de radicalismos políticos apenas recentemente, quando a direita sempre envergonhada saiu do armário com Jair Bolsonaro, e virou o que todos sabem. Bolsonaro tão odiado pela esquerda como Lula o é pela direita não são obras do acaso. São as figuras públicas mais disruptivas em meio século da vida nacional. Lula descobriu os pobres (e exagerou nessa paternidade) e Bolsonaro descobriu os conservadores (e exagerou nessa paternidade também).

Portanto, o radicalismo do futebol, em que o fanatismo é cego, serviu de aprendizado constante à avaliação do quadro político nacional. Nenhuma novidade. É preferível o combate mesmo insano ao jogo amistoso no futebol ou na política. Quem defende o meio-termo como o ex-prefeito Paulinho Serra não tem tutano para resistir às extremidades.

SETOR CEREBRAL

O meio de campo é a zona de conforto dos políticos de aluguel. Diferentemente do futebol. O meio de campo do futebol é o centro estratégico de qualquer equipe. Está vendo como futebol e política colocados frente à frente têm nuances nem sempre observadas?

O tempo tratará de colocar as questões nos devidos eixos civilizatórios, de que se ressentem os dois lados da moeda. Demora, mas esse dia chega.

Vou chegar já-já à resposta da manchetíssima de hoje, mas é preciso preparar o terreno para que me entendam. Estou cansado de dizer aos torcedores de clubes distintos que a maturidade de compreender as nuances de futebol, mesmo sem abdicar da loucura por determinadas cores, está na constatação sincera e honesta, quando não crítica, de que existe uma obviedade que a maioria insiste em ignorar: sempre há dois times em campo buscando o mesmo objetivo.

DOIS TIMES EM CAMPO

Ora, isso não é novidade alguma. É chover no molhado. Bobagem. A maioria dos torcedores sempre encontra uma justificativa ou muitas justificativas para tentar traduzir o resultado de sua equipe. Nas vitórias não faltam motivações, porque ganhar tem algo semelhante ao oposto da queda de um avião: é a soma de virtudes que determina o resultado.

O problema dos torcedores que enxergam somente as cores de seu time, excluindo as cores do adversário, é que, nas derrotas, insistem em procurar defeitos em seus jogadores, desprezando virtudes dos oponentes.

Em situações normais, que representam praticamente todos os percentuais possíveis à compreensão de um resultado de jogo jogado, a melhor explicação para avaliar racionalmente vitória, empate ou derrota do time do coração é abrir o peito à libertação do fanatismo.

Não se pode esquecer que o time com outro uniforme está em campo, dedicou-se durante o período preparatório a cercar a onça das qualidades e defeitos do próximo adversário, sobretudo nestes tempos com muita tecnologia, com algoritmos a denunciar os segredos técnicos e táticos mais recônditos.

TUDO ESCRUTINADO

Todos os jogadores e técnicos de equipes de alto nível sabem a maior parte de virtudes e defeitos do adversário. Sabem em minuímos detalhes. Inclusive em que canto uma eventual penalidade máxima vai ser batida. Ou qual é o ângulo de movimentação técnica preferido daquele atacante driblador. Ou o endereço final exato do cruzamento da linha de fundo.

Essas coisas estão empiricamente documentadas.  São os assessores de análises técnicas e táticas que reforçam ou desbravam as veredas ocupadas pela comissão técnica. Não existe almoço de vitória grátis no futebol como também não existe almoço grátis na própria vida.

Não assisto a todos os jogos de um dia, tampouco alguns dos principais jogos de um dia. Prefiro assistir a um ou no máximo dois jogos principais de um dia, desde que o dia tenha disponibilidade de me oferecer jogos potencialmente bons de se ver. Fiquei seletivo ao longo dos anos. Há uma demanda enorme por conhecimento em várias áreas no cotidiano. Essa situação me força a fazer escolhas.

DOIS MUNDOS

Exatamente nesse momento em que escrevo, oito da noite desta quarta-feira, sei que tem jogos na televisão e outros se sucederão por volta das nove e meia. Não devo ver nenhum. Talvez, quase provavelmente, vou assistir aos melhores momentos da vitória do Paris Sant Germain diante do Arsenal pela Copa dos Campeões.

O futebol do Primeiro Mundo mostra o quanto o futebol do nosso mundo está defasado. Um jogo da Champion é uma coisa. Um jogo da Libertadores ou da Sul-Americana é outra coisa. É como estar num teatro e se dirigir a uma gafieira.  As competições sul-americanas são porta-aberta ao desrespeito físico, com violência escancaradamente tolerada, quando não premiada. Os jogadores vivem em constantes conflitos. A força física não se limita às regras estabelecidas.

Já escrevi algumas vezes sobre a admiração que tenho por um grupo seletivo de analistas de futebol. Ouço-os com atenção máxima. Os barulhentos são geralmente o que menos merecem atenção. A maioria está atrás de audiência. Fazem espalhafatos do nada. Devem ser adorados por torcedores de classes populares. Cada um tem seu reduto de aficionados.

ALÉM DOS ALGORITMOS

O que ainda não encontrei como consumidor de futebol é algum analista que se tenha dado conta de que, mais importante que os algoritmos, cada vez mais invasivos a explicar ou procurar explicar desempenhos coletivos e individuais, com dados fantásticos  metabolizados por especialistas da engenharia de futebol,  mais importantes que os algoritmos é o conjunto da obra de cada equipe de futebol.

Aqui e ali há sim algumas abordagens circunstanciais e até mesmo sistêmicas sobre o desempenho de equipes, mas uma abordagem mais orgânica é raridade.

Pois é sobre isso que o tal manual que mencionei acima trata. Há mais de cinco anos desenhei a estrutura de uma abordagem que pretendia desbravar conceitos que deveriam servir de instrumento de navegação à compreensão das características táticas e estratégicas de equipes de futebol.

Perdi o material nesse computador maluco que um dia resolveu apagar tudo que salvei num determinado espaço. Sorte que havia utilizado a máquina impressora para carregar aquelas observações fora da zona de trabalho, na sala de estar, recorrendo à leitura do material em situações especificas.

São nada menos que 34 quesitos que procuram dissecar a atuação das equipes quando a bola rola. A aparentemente complexidade é exatamente isso, aparentemente, por que se trata mesmo de uma orquestração teórica maquiavélica. A sensação que tenho ao ler aqueles pressupostos é que decidi desafiar a natureza de incompletudes e exigir que um time seja perfeito. A perfeição, acredito, está ali naquela folha impressa com 34 apontamentos a destrinchar.

JOGO SURPREENDENTE

É claro que não vou revelá-los antes da hora. E nem sei qual seria a ordem. Meu genro teve acesso ao material. Ele sugeriu que transponha tudo aquilo em atração na Internet, em capítulos que seriam potencialmente instigantes ao recorrer à tecnologia como forma de dar vida às equipes virtuais que saltariam de meu texto. Como meu genro não é dado a excessos, talvez algum dia decida ir à prática.  

Agora, depois de toda essa enrolação, vou relevar um desses apontamentos que poderão dar ao leitor  ideia mais precisa do que pretendo dizer com esse manual do time perfeito.

Há várias modalidades de posse de bola de uma equipe de futebol, todas relacionados no manual da perfeição. Uma das quais observei no jogo de anteontem pela Sul-Americana entre o cansado time do Corinthians e o bem-preparado, frio e objetivo time do América de Cali.

Posse de bola dissuasiva está no meu manual do time perfeito desde a origem, mas confesso que tratava de outra face, não do que o América de Cali apresentou. A face óbvia, embora pouco notada, envolve o uso da posse de bola em situação de vantagem no placar para assegurar a vitória. É uma das formas de levar o adversário ao esgotamento físico e mental. Não vou detalhar essa operação porque esse não é o caso.

OPERAÇÃO ESFRIAMENTO

A outra face da posse de bola dissuasiva, que jamais imaginava, mas que observei no jogo do Corinthians e os colombianos, foi praticada, vejam só, pela equipe que estava em desvantagem no placar. Isso mesmo: contrariando tudo que se sagrou até hoje no futebol de que posse de bola sem compromisso necessariamente com o atingimento do gol adversário, mas como forma de sustentar a vantagem no placar, o América de Cali fez da posse de bola dissuasiva um desvio de rota em direção à recomposição no campo de jogo.

Vou explicar: logo após sofrer o gol de Memphis no primeiro tempo, um gol do craque holandês que seria uma covardia se jogasse no Flamengo ou mesmo no Palmeiras em fase de transição organizacional, logo após o gol sofrido, o América de Cali não correu atrás do empate.

Como assim? Vejam a gravação do jogo e entendam. Provavelmente por recomendação do treinador, o Américade Cali decidiu abrandar a fervente torcida corintiana. Tratou de desaquecer a temperatura do jogo tanto dentro quanto nas arquibancadas. Era preciso eliminar o fato atmosfera que favorecia o Corinthians.

Manter o jogo em alta temperatura no estádio do adversário não era uma proposta inteligente. Até porque o América de Cali estava abalado com o gol sofrido. A alternativa de baixar a temperatura do jogo foi levada até o final do primeiro tempo. A desvantagem de um gol era preferível ao risco de sofrer um novo gol antes que o intervalo chegasse. O América voltou para o segundo tempo num ambiente descontraído pelo próprio intervalo e empatou aos 40 segundos diante da negligência de marcação e posicionamento de um Corinthians relaxado.

A posse de bola dissuasiva em situação de desvantagem no placar se transformou, em seguida, agora com o empate, em posse de bola mais prospectiva, até voltar ao estágio anterior de posse de bola dissuasiva. Por falar nisso, posse de bola prospectiva é outro quesito do manual do time perfeito. Não pensem que vou detalhar. Não é hora.



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