Esportes

Decisão da Libertadores virou
pelada de luxo de competências

  DANIEL LIMA - 01/02/2021

Existe uma grande diferença de conceito entre pelada de luxo e pelada de várzea. Pelada de luxo, caso da decisão da Taça Libertadores entre Palmeiras e Santos, sábado no Maracanã, tem significado especial, do individual de competências mineradas pela tecnologia de dados a serviço do coletivismo glorificador. Pelada de várzea é o descompromisso com o coletivo, ou a mitigação do coletivo, em favor do individualismo. Pelada de luxo é comprometimento total com o resultado. Pelada de várzea é o embevecimento desmedido pelo estrelismo.  

Portanto, o que em princípio poderia sugerir desprestígio ou mesmo ofensa avaliativa ao jogo que levou o Palmeiras pela segunda vez na história a um Mundial de Clubes, e interrompeu a trajetória do Santos rumo ao tetracampeonato da competição, na verdade é uma ode às competências dentro e fora de campo. Com paradoxais sinalizações de limitações impostas pelas mesmas competências.  

Santos e Palmeiras se esmeraram tanto no esquadrinhamento estatístico, técnico e tático para o grande embate de sábado que, vejam só, fizeram dos mais de 100 minutos do jogo um laboratório prático de invalidações mútuas.  

Automatismo funcional  

Fosse um teste para aferir até que ponto o homem e a máquina são conciliáveis no futebol, teriam recebido nota máxima.  

Fosse um teste complementar para aferir até que ponto o homem que se submete exaustivamente à máquina flerta com o automatismo sem brilho, a nota também seria a máxima. 

O paroxismo da qualificação preparatória conduziu a disputa à dissolução do espetáculo como peça memorável de plástica e emoção no sentido mais profundo do termo.    

Santos e Palmeiras jogaram um jogo em que as virtudes potenciais expostas em jogos anteriores viraram pó ante virtudes invisíveis.  

Melhores momentos?  

Explico: tudo o que Palmeiras e Santos têm de melhor como equipes, individual, coletiva e estruturalmente tática, foi tão meticulosamente estudado pelas respectivas comissões técnicas e os próprios jogadores que o resultado foi o que se viu. Um jogo fluvial em transpiração, mas escasso em inspiração. Quem pretender selecionar os melhores momentos terá dificuldades enormes.  

Não vou entrar em detalhes para dizer quais foram os pontos neutralizados mutuamente pelos dois times. Foram todos. Faltou espaço a Marinho e a Soteldo, Luiz Adriano não pode fazer com eficiência a jogada de que é capaz, de proteger a bola com o corpo ante os zagueiros e arrancar rumo ao gol adversário ou passar para um companheiro em diagonal. O espaço de que o Palmeiras como time pragmático de passes e lançamentos frequentes tanto precisava morreu nos pés de três volantes adversários e nos cuidados extremos em bloqueios na origem dessas jogadas, ou seja, marcando implacavelmente os executores.  

Chega de minúcias, porque são muitas. O que marcou o clássico paulista na final da Libertadores foi mesmo a coroação do anticlímax de um jogo histórico no sentido mais abrangente da expressão.  

Sem comparação  

Nem de longe se compara à final do ano passado entre River Plate e Flamengo. Aliás, um contraponto didático. Afinal, só foi possível ao time do Rio virar o placar no final porque o adversário abriu a guarda com três substituições comprometedoras no sentido de que quebrou o ajuste coletivo, bem como o espírito de decisão fervilhado até então. Não se fica impune ante o melhor time do futebol brasileiro (ainda) quando se permite que um Gabigol e um Bruno Henrique encontrem um palmo de gramado livre para iniciarem o que mais sabem fazer: driblar e finalizar com precisão.  

A pelada de luxo no Maracanã é um elogio à eficiência de organização coletiva e aplicação individual das duas equipes dentro e fora de campo. Mas é também uma crítica explícita, ou implícita, à incapacidade de tanto Palmeiras quanto Santos criarem antídotos às armaduras impostas entre si.  

Maquinaria tecnológica  

O futebol de dados em forma de mineração detalhadíssima de cada indicador potencialmente aplicável é uma maquinaria tecnológica cada vez mais utilizada. Não há time hoje em dia, mesmo em divisões inferiores, que despreze registros próprios e de terceiros com os quais se lança nos gramados. Sabe-se quase tudo. Até a probabilidade de um batedor de penalidades máximas optar pelo canto direito baixo.  

Aliás, isso é café pequeno, porque desde longe, na descoberta de que futebol pode ter sim essências matemáticos, batedores de pênaltis e goleiros são escrutinados criteriosamente como objetos de laboratório à eficiência nas cobranças e defesas.  

No caso da final da Libertadores o que se viu sem truques foi a exposição continuada de competências analíticas e operacionais de que dispuseram as duas equipes para o embate final.  

Declarações frutíferas  

E quem tem dúvidas sobre os cuidados das duas corporações (é assim que o futebol de alto nível é avaliado) procure na Internet as declarações do auxiliar-técnico Cuquinha sobre o que o Santos fez durante a semana preparatória. Ele disse com clareza e orgulho que o adversário foi analisado visceralmente e, satisfeito, contava que todo o plano foi perfeito, a ponto de o Palmeiras não conseguir jogar. E, conformado, admitiu que a recíproca era verdadeira.  

O que transformou o Palmeiras no campeão da América antes que a prorrogação já delineada e aparentemente consensual entre os jogadores, até que a expulsão do técnico Cuca se consumasse, foi um erro técnico crasso do goleiro do Santos.  

O cruzamento da direita em direção à pequena área seria uma jogada qualquer, como outras tentativas e algumas execuções do Palmeiras durante o jogo, não fosse a saída atabalhoada do goleiro. Ele se lançou em direção à bola sem convicção, estancou a deslocação e, quase desequilibrado e sem noção de posicionamento, não conteve a cabeçada de Breno Lopes que, mostram as imagens, não ganhou o ângulo superior esquerdo como uma execução inapelável.  

Erro crasso do goleiro  

Mais uma vez o pós-jogo, esse às vezes confessionário público de atletas e comissão técnica, revelou a natureza de uma jogada decisiva, quando não explicativa. Breno Lopes fez uma declaração que deveria ser observada com atenção máxima e que sutilmente jogou nas costas do goleiro santista o peso da derrota: ele, autor do gol do título, disse com a simplicidade típica de quem conhece o caminho do gol adversário; “Percebi a saída do goleiro”.  

Ora, não é preciso dizer mais nada sobre um atacante que vai para um cabeceio ante um marcador de menor estatura e impulsão: Breno Lopes sabia exatamente o que fazer quando o goleiro se dirigiu à bola cruzada. Ou seja: escolheu o ponto do gol que pretendia acertar. Se o goleiro do Santos ficasse onde deveria, um passo à frente da linha fatal, no centro do gol, Breno Lopes teria de buscar uma alternativa mental para o ajuste da calibragem com provável menor potencial de estrago.  

O que quero dizer com isso é que num jogo em que a tecnologia prevaleceu como base do comportamento humano no gramado do Maracanã, a ponto de o rendimento técnico-tático ter estrangulado as virtudes individuais, chegou-se a um paradoxo complementar: o Palmeiras ganhou num lance isolado exatamente da forma como tem ganhado a maioria dos jogos com uma profusão de jogadas semelhantes. Ou seja: o campeão da América chegou a um estágio de refinamento que basta uma jogada entre tantas frustradas para balançar a rede adversária, no caso atabalhoadamente resguardada. 

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