Sociedade

Museu da Desindustrialização
é mesmo proposta provocativa

  DANIEL LIMA - 27/07/2021

É para rir mesmo da proposta que faço em tom de deboche, de sarcasmo, como prova viva de um regionalismo não correspondido e entregue a muita gente sem espírito público e cidadão.  

Já que não fomos capazes ao longo dos tempos de construir um museu automotivo e tampouco cuidamos do estádio onde Pelé fez o primeiro gol, que tal mobilizar-se para erguer em galpão desocupado entre muitos da praça um museu que retrate a desindustrialização regional?  

O Museu da Desindustrialização é uma provocação sadia. E revoltada. 

É claro que é uma brincadeirinha que faço para impactar mesmo os mais insensíveis. Essa obra, levada a sério, seria um tapa na cara de muita gente que só usufrui das riquezas do Grande ABC, as quais se esvaem lenta e preocupantemente.  

Somente os nichos de bem-aventurados, muitos dos quais colados nas tetas da prefeituras, não estão nem aí com a hora do Brasil.  

Reverberação total  

Qual é o problema de o Grande ABC ter finalmente uma construção própria, de cidadania responsável, um espaço em que a história da desindustrialização econômica seja o ambiente a canalizar hordas de turistas e, quem sabe, servir também de autocrítica que reverbere em transformações?  

Se Dallas, no Texas, onde o presidente John Kennedy foi abatido por um tiro certeiro, deu de ombros à desgraça e se aparelhou para tornar aquela área um circuito de turistas do mundo inteiro, além de construir um memorial em homenagem ao presidente assassinado, por que não o Grande ABC tornar-se vitrine invejável, mesmo que lastimável, de uma desgraceira em forma de deserções e desintegração do tecido econômico tendo a indústria como ponto central?  

Já imaginaram ingressar num galpão bem cuidado, bem dividido, bem-organizado, e observar, e tocar, milhares de peças, de fotografias, a reproduzir as perdas industriais e suas variáveis?  

Insumos não faltam  

Ou seja: o Museu da Desindustrialização não reuniria apenas provas provadas de empresas industriais de diversos portes que se foram daqui ou que pereceram aqui. Também registraria os danos colaterais que atingiram em cheio empreendimentos de outras atividades que têm no setor industrial o amálgama de substância econômica.  

A Rota do Frango com Polenta é uma dessas dores colaterais relacionadíssimas à destruição do tecido industrial. Como tantos outros exemplos.  

Minha dúvida é se o retrato da fachada gigantesca da Casas Bahia, recentemente desativada em São Caetano, estaria no Museu da Desindustrialização. A medida se encaixaria perfeitamente no conceito de encolhimento da região, mas como a origem da decisão se sobrepõe às evidências econômicas, ou seja, a indignação pelo descaso, desprezo, quando não agressões que o patriarca Samuel Klein sofreu mesmo depois de morto, talvez não fosse o caso de se reservar um espaço às lembranças do empreendimento familiar mais vitorioso do Grande ABC ao longo dos tempos.  

O que não poderia faltar no Museu da Desindustrialização do Grande ABC seriam as logomarcas e quem sabe até réplicas das fachadas dos empreendimentos que se escafederam, que se ferraram ao fecharem as portas, além dos responsáveis diretos e indiretos pela degringolada regional, território estadual entre os maiores municípios do Estado que menos avançaram no PIB neste século.  

Também fotos de gente que contribuiu imensamente para levar o Grande ABC ao estágio atual seriam indispensáveis. 

Diversidade de agentes  

O que quero dizer com isso é que além das logomarcas dos empreendimentos (Brastemp, Brasmotor, Ford, Molins, Brascola e tantos outros) também deveriam constar da arquitetura material do Museu da Desindustrialização as identidades visuais de entidades de classe social, econômica e sindical que colaboraram intensamente, com omissão ou ações suicidas, para levar a região ao desfiladeiro da debilidade generalizada.   

Claro que não poderiam faltar enormes retratos de participantes ativos como o presidente Fernando Henrique Cardoso com suas políticas de abertura econômica sem gradualismo, do sindicalista Lula da Silva e seus parceiros, de levas de prefeitos e quem sabe até mesmo de jornalistas que mentiram o tempo todo a mando do patrão para negar nas páginas de jornais o que estava escancarado nas ruas.  

O Museu da Desindustrialização seria um extraordinário palco da verdade escancarada.  

Perdas e ganhos  

Sobre Fernando Henrique Cardoso, não tenho dúvida alguma de que suas fotos deveriam estar espalhadas pelo Museu da Desindustrialização, mesmo que ele tenha realizado, em nível nacional, uma gestão mais compatível com a expectativa da sociedade.  

O fato de ter colocado ordem na casa da inflação e de ter dado um choque de modernidade industrial não o exime de estragos correlatos. No Grande ABC os danos superaram largamente os pontos positivos. As pequenas indústrias morreram ou foram tomadas na mão grande da moeda forte pelo capital estrangeiro.  

Tenho dúvidas se pôsteres do ex-sindicalista e ex-presidente Lula da Silva deveriam mesmo ser levados ao Museu da Desindustrialização. Colocar sua imagem ao lado da de Fernando Henrique Cardoso, como se ambos fossem do mesmo calibre destrutivo da região, talvez fosse uma injustiça.  

Lula da Silva presidente durante oito anos foi bem melhor e mais positivo para o Grande ABC do que o Lula da Silva sindicalista, líder de um movimento importante, reformista, mas que jamais ultrapassou a barreira do corporativismo e seletivismo. Criou-se uma casta de lideranças sindicais e de trabalhadores que embalou o berço da fuga e da falência empresarial. Sei não se Lula da Silva é mesmo diferente de FHC para a região.  

O Museu da Desindustrialização do Grande ABC não é tarefa para amadores, embora tenha dúvida de que deveria ser permanentemente uma obra que lembrasse a abertura dos Jogos Olímpicos, com aquele festival de cores e luzes, de imagens trabalhadas pela tecnologia, ou se fosse melhor mesmo sem qualquer rebuscamento, traduzindo-se num espaço quase rudimentar no escopo imagético. Não necessariamente um castelo mal-assombrado, mas longe de virar uma Disneyworld.  

Nem luxo, nem lixo  

A primeira opção corresponderia a uma falsa constatação da realidade dos fatos decorrentes da corrente contínua de desistências e mudanças físicas de estabelecimentos econômicos. A segunda opção provocaria um choque de realidade numa região que à viuvez industrial não antepôs até agora uma alternativa sequer a nova patamar de reconstrução.  

Vivemos, como se sabe, num espaço vazio em todos os sentidos da expressão. Estamos feito baratas tontas com complexo de gata borralheira e síndrome de avestruz. 

Somos tão provincianos e inodoros que não existe quase nenhuma alma na praça com coragem ética de bradar contra mandachuvas e mandachuvinhas que mantêm o Grande ABC num estágio de desleixo institucional, fonte maior da letargia coletiva.  

Falta regionalismo  

Não temos exemplos corporativos em qualquer atividade que possam ser requisitados a uma empreitada com viés de restauração do poder econômico que sempre tivemos.  

O Museu da Desindustrialização é um sonho tirado do pesadelo e no fundo não passa de ilusão porque jamais haverá quem se interesse em oferecer financiamento para o retirar do labirinto da teoria.  

Menos mal que certamente não faltariam acadêmicos e voluntários de outras áreas que se disporiam a recolher os pertences esgarçados de um casamento de mobilidade social que se retrai continuamente.  

Contamos na região com arqueólogos econômicos preparados para uma jornada longa mas indispensável à compreensão de como se joga fora um bilhete premiado de desenvolvimento econômico a partir do grande prêmio em forma de chegada das montadoras de veículos. 

Minha dúvida é se não correremos o risco de subestimar a realidade dos fatos históricos e optar por um galpão de dimensões físicas modestas para a quantidade de provas provadas do desastre que vivemos.  

Errar no calibre dimensional seria tão contraproducente quanto tratar o Museu da Desindustrialização com maniqueísmos econômicos e ideológicos.  

Todo mundo tem culpa nesse cartório. Ninguém deve ser poupado. A obra seria uma penitência coletiva. E também inspiradora às novas gerações. Uma forma de advertência ao futuro que os jovens devem construir, tendo como base de advertência o pouco preparo das gerações que os antecederam.

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