Sociedade

Grande ABC é João de Deus
sem milagres de João de Deus

  DANIEL LIMA - 27/08/2021

Bicho de sete cabeças. Complexo de Gata Borralheira. Gataborralheirismo. Síndrome de Avestruz. Bandidos sociais. Mandachuvas e mandachuvinhas. Província. Nordestinação. Esses são alguns verbetes e algumas expressões que integram o léxico editorial de CapitalSocial, vários dos quais com origem no berço impresso da revista LivreMercado.  

Todos se referem ao estágio inicial ou avançado de putrefação institucional e econômica do Grande ABC. São predicados, entre aspas, que deveriam causar indignação dos formadores de opinião.  

Formadores de opinião? Cadê os formadores de opinião do Grande ABC? Esses bate-bocas nas redes sociais e essas entrevistas na mídia tradicional são em geral inférteis.  

Parece incrível que em plena Idade Avançada da Tecnologia Digital, que a todos proporciona potencial extraordinário de sinergia e interatividade, o Grande ABC viva nas trevas da subserviência, do desinteresse, do desânimo, da inaptidão, do desprezo e de muitos mais em iniciativas coletivas.   

Organizações? Mesmo?  

A institucionalidade envelhecida está aí em forma de organizações sociais, privadas e públicas. “Organizações” é força de expressão. Uma formalidade de representação, não de efetiva representatividade.  

Guardem este texto e me cobrem no futuro. Mais que isso: peguem este texto e, sem malandragens retiradas do contexto, comparem com tudo o que existe de legado de regionalismo deste site. Não haverá uma vírgula sequer de incoerência, de ruptura com os fatos consumados, com as projeções céticas, ácidas e politicamente incorretas.  

Só nesses dois veículos de comunicação são 30 anos de jornada. Nenhuma mídia regional conta com essa característica. Trinta anos sob o mesmo diapasão editorial de regionalidade submetida à construção de cenários cada vez mais escancaradamente comprovados em forma de fatos.  

Identidade evadida  

Estamos à deriva há muito tempo e não há ainda no horizonte próximo absolutamente nada que indique saída ao encalacramento destrutivo, porque congelador de uma situação alarmante.  

A degringolada econômica regional é a face mais visível do que ensaiamos ao longo de décadas em busca de cristalização de uma identidade que se evade. A cultura regional, no sentido mais abrangente da expressão, dissolve-se.  

A orfandade tanto municipal quanto regional é uma constatação automática do que vivemos nestes tempos de regionalismo flácido e de municipalismo interesseiro.  

Assistindo outro dia na Netflix documentário sobre a vida, a obra e as travessuras de João de Deus em Abadiânia pequenina cidade de Goiás que ele transformou em feudo muito particular, de usos e abusos, não resisti à comparação com os municípios do Grande ABC e mais ainda com o Grande ABC como um todo. 

Temos espalhados por aqui muitos exemplares de João de Deus no campo do controle pernicioso do que é público e entreguismo despudorado do que é privado, além de dispersão social. Somos uma Abadiânia e não nos damos conta disso.  

Controladores de voos  

Há no Grande ABC de João de Deus controladores de voos que usam e abusam de terminologias que remetem à democracia, mas o que impera mesmo é o domínio de grupos instalados no Poder Público, por onde passam, quando não se instalam, diferentes forças de pressão, de coerção e de dominação.  

Está certo o leitor que conhece a biografia de João de Deus ao questionar a comparação. Com razão, mas também sem razões.  

João de Deus deixou uma obra de milagres mediúnicos que nem o mais rigoroso inquérito policial desqualifica, mas também repassou legado de contravenções que o mais benevolente membro do Sistema Judiciário jamais negaria. Uma dualidade de médico e monstro, por assim dizer. 

O Grande ABC João de Deus não contou com a mesma sorte de Abadiânia. Não contou e não conta. Aqui não existe milagreiro capaz de botar o trem do Desenvolvimento Econômico na bitola da competitividade. Mas sobram aventureiros que tornam a relação com a sociedade algo sadomasoquista da pior qualidade. Essa é a porção João de Deus do Grande ABC.  

Somos como região um João de Deus sem os cromossomos espirituais de curas de João de Deus, mas inevitavelmente com os desvios de João de Deus.  

Mais credibilidade  

Ainda não assisti a todos os episódios da série mas os três primeiros e o conhecimento pretérito de leituras oferecem a certeza de que não há precipitação ao traçar essa analogia. O Grande ABC é metade de João de Deus:  a metade fora das quatro linhas do gramado moral, e sem a outra metade de um circuito internacional de competitividade.  

Diferentemente de João de Deus, que contava com intermediários a sensibilizar o mercado do desespero e dos milagres, e que entregavam a mercadoria em forma de esperança e respostas desejadas inclusive para gente famosa e até do Supremo, o Grande ABC de mercenários ilusionistas industrializa resultados fraudulentos.  

A internacionalização, principalmente a internacionalização, do público consumidor da atuação espiritual de João de Deus se converteu em ganhos extraordinários porque se respaldava na credibilidade dos serviços prestados.  

Já a catequese disseminadora de um Grande ABC fluente em investimentos e interesses capitalistas, de nova onda desenvolvimentista, é uma narrativa falsa, é uma fraude institucionalizada.  

Não há nenhum indicador econômico e social sequer que dê respaldo aos marqueteiros. Sim, marqueteiros, porque eles se lançam à empreitada do positivismo contando com premissas fraudulentas e eleitoreiras.  

E aí voltamos ao princípio de tudo: cadê as forças de pressão de uma suposta sociedade civil organizada para oporem resistência aos batalhões municipais e regional de tantas falsidades, de oportunistas que também são negacionistas econômicos?  

Fosse desbocado não teria dúvida em produzir uma rima adequadíssima à expressão “sociedade civil organizada”. Sinto tremedeira quando leio ou ouço algo que remeta a essa aberração. Nossa sociedade civil é profundamente desorganizada.  

E, como já me manifestei há muito tempo, desde que as redes sociais começaram a mudar a relação entre sociedade e mídias (para desgraça do jornalismo impresso, que sempre jogou livre, leve e solto) as facilidades tecnológicas na palma da mão, no bolso e nas bolsas, bagunçaram de vez o espirito de regionalidade.  

João sim, João não  

O mundo nas mãos significa o esfarelamento do regionalismo e o fatiamento do municipalismo. Perdemos o pouco sentido do conjunto da obra que o regionalismo recomenda. E ganhamos franjas do radicalismo e do protecionismo que o municipalismo liberta.  

A nacionalização, principalmente a nacionalização, de temáticas que influenciam o Grande ABC, é o lado mais arrasador do regionalismo e do municipalismo. Os grupos organizados nas redes sociais em torno de prefeitos, os quais são integrados por gentes dos próprios governos locais, predominam acentuadamente. Alguns dissidentes nem sempre devem ser levados a sério.  

O João de Deus milagroso não faz moradia no Grande ABC. A Abadiânia do João de Deus abusador é nossa realidade.  

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