Economia

Um intruso na entrevista
do Diário com sindicalista

  DANIEL LIMA - 21/04/2022

O intruso sou eu mesmo. E não é a primeira vez que pego carona em algum tipo de trabalho jornalístico, quer como comentador geral do entrevistado, quer como contraponto a determinado artigo.  

E faço isso nesta edição porque o assunto vale a pena e, tanto como jornalista como leitor comum, assinante do jornal, não fiquei satisfeito nem com as perguntas, muito menos com as respostas que o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC deu ao Diário do Grande ABC. 

Moisés Selerges Junior foi o entrevistado. Ele está na galeria dos presidentes do mais importante sindicato de metalúrgicos do País. O sindicato de Lula da Silva, de Luiz Marinho e de tantos outros. O sindicato que revolucionou e convulsionou as relações entre capital e trabalho a partir de São Bernardo, no fim dos anos 1970. 

Um sindicato que, na região, só não abrange Santo André e Mauá, num acordo de cavalheiros para colocar panos quentes em querelas que avançaram ao longo dos anos. 

ENTREVISTA AO DIÁRIO  

Leio qualquer coisa, principalmente jornal, com olhar mais apurado que o leitor comum. Isso é vício de ombudsman autorizado em outros tempos e não-autorizado nestes tempos.  

Escrevi o livro “Meias-Verdades”, em 2004, por conta disso. Poderia escrever mais meia dúzia, de no mínimo 220 páginas cada. A matéria-prima é abundante no jornalismo brasileiro. Ainda mais nestes tempos de polarização. Manchetes e conteúdo são manipulados descaradamente. Leitores comuns entram pelo cano. Não é caso, entretanto, da entrevista do Diário do Grande ABC.  

No caso da entrevista que vou reproduzir na sequência e da qual participei como pirata, abelhudo, seja o que for, faço apenas algumas considerações breves na sequência de cada resposta do entrevistado.  

Sob o título “O sindicalismo precisa mudar, pois o trabalho mudou”, a edição da entrevista ressalta:  

“Eleito novo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Moisés Selerges Junior sabe que o momento em que senta na principal cadeira da entidade não é dos mais fáceis. Na região, o sindicato acompanha a possibilidade de mais uma fábrica histórica deixar a região: a Toyota. O presidente, entretanto, avalia que há possiblidade de a montadora permanecer em São Bernardo, mesmo que seja com outro tipo de produção. De acordo com o dirigente, o processo de desindustrialização que atinge o Grande ABC desde o fim dos anos 1980 também tem impactado outras regiões do Brasil, embora com menos intensidade.  

DIÁRIO -- O senhor foi eleito este ano para presidir o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Qual será o tipo de atuação que irá nortear sua administração? 

SELERGES -- O tipo de atuação que norteia nossa gestão é dialogar com os trabalhadores sobre o país em que estamos vivendo. Perdemos muitos empregos, então, há a necessidade de mudança no país. Isso com certeza irá nortear a pauta de toda a classe trabalhadora. Esta mudança tem que ser feita conjuntamente com outros sindicatos e movimentos sociais. Buscaremos a proximidade maior com a nossa base e também com os movimentos que querem um País melhor. A luta dos metalúrgicos passa por um Brasil mais justo e fraterno. Os trabalhadores, que produzem a riqueza deste País, têm que ter direito à moradia, alimentação e universidade. 

CAPITALSOCIAL – O presidente do sindicato não faz qualquer menção a empresários, notadamente a pequenos e médios empresários que sofrem com as desigualdades na indústria da região. E que estão em processo de desaparecimento permanente. A resposta do dirigente sindical, e na sequência vai ser possível clarificar mais a situação, tem viés nitidamente político-ideológico. Como os antecessores no cargo. A diferença de que vários dos antecessores pareciam mais preparados.   

DIÁRIO -- Qual é o panorama que o metalúrgico encontra hoje no Grande ABC, berço industrial do Brasil?  

SELERGES -- É o mesmo panorama encontrado em todo o Brasil, em relação ao tema da indústria, porque não existe uma política voltada para a indústria nacional no nosso País. O debate da política industrial é importante porque nossos empregos estão em jogo e porque a indústria gera cadeias produtivas e empregos que agregam mais valor. Além disso, os empregos na indústria impulsionam outros setores da economia, como serviços e comércio. 

CAPITALSOCIAL – O diagnóstico do sindicalista é correto, mas incompleto: a desindustrialização não é generalizada no País e, mais que isso, é comprovadamente mais grave no Grande ABC ao longo dos últimos 40 anos. E o sindicalismo faz parte desse explosivo social. Há regiões no Estado de São Paulo, entre outras do País, em que a industrialização tem adensamento. Um exemplo providencial: a Região Metropolitana de Sorocaba, para onde está indo a Toyota.  

DIÁRIO -- É fato que a região vem em processo de desindustrialização desde os anos 80. Como o sindicato vê esse movimento e como a instituição pode cuidar dos postos de trabalho no Grande ABC? 

SELERGES -- A desindustrialização não é só uma questão do Grande ABC. Empresas em todo País estão fechando. Não é uma questão só da região. Buscamos a geração de mais empregos, discutimos políticas voltadas para a indústria e, principalmente, para a produção local. É fundamental uma política industrial que priorize o conteúdo local. Há como se produzir aqui no Brasil para gerar mais empregos aqui. Dentro da nossa estratégia isso passa por um projeto de País. O sindicato quer participar e propor políticas industriais. Queremos programas de formação profissional para os trabalhadores, o fortalecimento da indústria, uma indústria responsável ecologicamente, moderna, que gere empregos de qualidade e que coloque o Brasil como protagonista no mundo. 

CAPITALSOCIAL –  A ausência de política industrial no ambiente nacional é quase tão antiga quanto o próprio andar de cágado da economia nacional. Não é recente como sugere ou pressupõe o sindicalista. Em uma década e meia do governo petista de Lula da Silva o sindicalismo com raízes em São Bernardo pós 1978 não ofereceu à sociedade um projeto que abordasse em profundidade as medidas mais relevantes. Sempre se pautou por anacronismos ideológicos e esquizofrenia no tratamento ao capital, além de corporativismo dissociada da sociedade em que está inserido.   

DIÁRIO -- Essa situação culminou na partida da Ford, por exemplo, uma das principais montadoras na região. Como o sindicato viu essa situação e como foi a atuação para evitar esse episódio? 

SELERGES -- No tema industrial o fechamento da Ford tornou-se um símbolo e daqui a alguns anos, quando lembrarmos da situação pela qual o Brasil vem vivendo hoje, uma das coisas que nós vamos comentar será o caso Ford. A atuação do sindicato foi conversar com a própria Ford, com os governos do município e do Estado, e também procuramos o governo federal. Realizamos diversas ações e mobilizações. Penso que tudo que o sindicato poderia fazer o sindicato fez. 

CAPITALSOCIAL – A debandada da Ford não tem motivações exclusivamente externas, macroeconômica, mas um conjunto deletério de fatores, entre os quais o próprio sindicalismo em São Bernardo. Foram desajustes ao longo do tempo.   

DIÁRIO – Ainda nesse contexto, a montadora Toyota também tem planos para deixar São Bernardo. Como estão as tratativas para a permanência da fábrica na cidade?   

SELERGES -- Foi criado um grupo de estudo em que nós estamos discutindo com a Toyota para ver a viabilidade de a planta permanecer em São Bernardo. Se não for com os produtos que ela fábrica hoje na cidade, que seja com uma outra possibilidade que permita manter os empregos aqui. 

CAPITALSOCIAL – A decisão da Toyota é irreversível, segundo o próprio presidente da multinacional no Brasil, e, mais que isso, o sindicato tinha conhecimento há muito tempo de que a medida estratégica seria tomada. O que ocorre nos últimos dias, pós-anúncio da divisão de autopeças da empresa, setor que restou desde que a produção do jipe Bandeirantes foi desativada no início do século, não passa de dramatização deliberada e programada sem efeito prático algum.    

DIÁRIO -- O senhor acha que os poderes públicos municipal e estadual também podem auxiliar de alguma forma na permanência da montadora em São Bernardo? De que forma?   

SELERGES -- Acredito que tanto o município quanto o Estado podem ajudar no sentido da permanência da Toyota aqui. Como eles podem ajudar? Dentro daquilo que cabe ao Estado e ao município, seja na questão de tributos, seja de mostrar a importância da região. O Grande ABC é uma região extremamente positiva em relação a vários aspectos, como logísticos, por exemplo.  

CAPITALSOCIAL – O paternalismo estatal em qualquer esfera é tão nocivo ao conjunto da sociedade quanto o descaso. Qualquer tentativa de aparar as arestas ou aprofundar-se cirurgicamente por vias estranhas à potencialização industrial do Grande ABC que não seja pela concorrência arbitrada sempre será um furo nágua. Quem pagará a conta será a sociedade brasileira. Quando benemerências fiscais entram em campo – e isso vale para todos os territórios nacionais – a conta sobra para o conjunto da população. Competitividade nacional e internacional não se faz com excessos de galanteios econômicos. Não há almoço grátis na economia. E a logística do Grande ABC está a léguas de distância do conceito de produtividade. Trata-se de uma geografia de encalacramento. Apenas São Bernardo, agora com várias obras, dispõe de capacidade respiratória para mitigar maior derramamento de perdas de trabalhadores e de Valor Adicionado.   

DIÁRIO -- Há temor de que outras grandes fábricas, como a Volkswagen ou a Scania, deixem a região?  

SELERGES -- Temor sempre existe, ainda mais em um País que não tem política voltada para a indústria. Ninguém está tranquilo em relação a isso, mas penso que no caso da Volkswagen e Scania não existe essa possibilidade. Então, nós temos que cobrar do poder público para que isso não venha a acontecer, e precisamos cobrar agora.  

CAPITALSOCIAL – Há várias cotas de potenciais responsabilidades para tentar recuperar parte da competitividade perdida pelo Grande ABC ao longo de décadas. E essa conta não está exclusivamente nos passivos do poder público municipal, estadual e federal. Todo o conjunto precisa estar inserido nas resoluções. E o sindicato, que tem muito passivo, não pode excluir-se de responsabilidade.

DIÁRIO -- A Mercedes está colocando 5.000 trabalhadores em férias. Isso também preocupa o sindicato?  

SELERGES -- Sim. Preocupa o sindicato. Um dos motivos de a Mercedes estar dando férias coletivas é por conta da falta dos componentes que não são fabricados aqui no Brasil. Por isso defendemos o conteúdo local. Semicondutores são fabricados na China e em outros lugares que não no Brasil. Então, justamente em um momento como agora, de crescimento na venda de caminhões, o setor é prejudicado por conta disso.  

CAPITALSOCIAL – A excepcionalidade de estrangulamento logístico de abastecimento internacional por causa da pandemia do Coronavírus e da guerra na Ucrânia explica a situação em que vivem em termos de abastecimento de suprimentos as montadoras e autopeças no Grande ABC e no Brasil como um todo. O redirecionamento de cadeias produtivas em busca de uma centralização geopolítica, como pretendem formuladores de estratégias internacionais, é uma saída inescapável. E isso obriga os agentes públicos, privados e sindicais a agirem com rapidez.  

DIÁRIO -- O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC é um dos maiores do País. Quais são as principais atuações da entidade junto aos trabalhadores?  

SELERGES -- O sindicato tem o compromisso com os trabalhadores de lutar por melhores condições de trabalho, por salário mais justo, por uma sociedade mais fraterna, pelo nosso projeto, que eu costumo dizer, que é ser feliz. 

CAPITALSOCIAL – Entre suposto projeto e realizações há uma quase interminável rodovia com buracos espalhados por todos os cantos. O sindicato dos metalúrgicos precisa produzir reflexões que levem em conta o ambiente externo, não só dos trabalhadores. Olhar para o próprio umbigo está comprovadamente aquém das necessidades da região. Pior que isso é o que já foi levado a cabo: tentar impor a eventuais parceiros de jornada externas o modus-operandi sindicalista.

DIÁRIO -- Hoje, quantos trabalhadores o sindicato representa no Grande ABC? Esse número pode aumentar?  

SELERGES -- Nossa base hoje tem 68 mil metalúrgicos localizados nas cidades de São Bernardo, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Esse número pode aumentar se a economia voltar a crescer e tiver políticas voltadas para isso. E uma das causas que discutimos o tempo todo é justamente o fato de não existir política para a indústria no Brasil. O sindicato fala de política porque é ela que decide o nosso futuro.   

CAPITALSOCIAL – A base do sindicato já foi o dobro, nos tempos em que desindustrialização não constava do léxico da economia regional. E sempre se deram as mesmas respostas às soluções necessárias. Política industrial não pode ser vista e exposta como um buraco negro do Estado restrito a determinado período. O problema é antigo e atravessou governos.

DIÁRIO -- Como o sindicato acompanha a cadeia de produção na região? A lei da ferramentaria avançou?  

SELERGES -- O sindicato acompanha a cadeia produtiva e tenta fazer o mapeamento das empresas da categoria do setor metalmecânico, principalmente do automotivo, que é a maior parte da nossa base. E assim buscamos compreender como a cadeia está estabelecida e organizada. Na verdade, com a lei da ferramentaria há um debate sobre como o governo do Estado poderá fazer uso dos créditos do ICMS, o Pro-Ferramentaria, e isso vem acontecendo de forma tímida. O governo fez o lançamento e nós estamos discutindo e acompanhando.  

CAPITALSOCIAL – Se de fato existe mapeamento das cadeias produtivas do setor metalúrgico no Grande ABC, não se entende as razões que levam o sindicato a manter informações fechadas a sete chaves. É indispensável que as compartilhe com secretarias de Desenvolvimento Econômico de cada Município da região. Mais que isso: que catapulte os dados ao Clube dos Prefeitos e que se forme grupo de especialistas para atuar em conjunto com as principais empresas do setor.   

DIÁRIO -- O Rota 2030 trouxe algum benefício palpável ao trabalhador do ramo automotivo? Qual?   

SELERGES -- No período do Inovar-Auto, projeto mais estruturante que tratava de investimento, pesquisa, desenvolvimento e inovação, as empresas tinham melhores condições de produção e de comprar de fornecedores aqui no Brasil, o conteúdo local. O que gerava empregos, renda e riqueza nacionalmente. Era um programa que também tratava de eficiência energética e segurança veicular. Já o Rota 2030 aborda pesquisa, desenvolvimento e inovação, mas com carências. É um programa muito solto, com projetos pontuais. A maior crítica que fazemos entre um e outro é que o Rota 2030 não está sendo estruturante, mas que envolve muitos pequenos projetos soltos. Não há política para a indústria e o governo ainda quer zerar a alíquota da importação, sendo que temos condições de produzir no Brasil. Queremos que a produção seja feita aqui, com conteúdo local e não com importados, para gerar empregos de qualidade e renda na região e no País. 

CAPITALSOCIAL – A desativação do programa lamentada pelo sindicalista tem raiz nos custos fiscais que já não cabem nos cofres públicos federais. A indústria automotiva tornou-se dependente demais do Estado e com isso acumulou improdutividades das quais grupos organizados de trabalhadores sempre se beneficiaram. A alta carga tributária que abate o setor, por outro lado, poderia ser uma moeda de troca em busca de competitividade geral. Resta saber quem vai mexer no queijo do Estado deficitário. 

DIÁRIO -- O que mudou no sindicalismo em uma década? 

SELERGES -- Na verdade, o trabalho mudou. O mundo do trabalho mudou. Eu não acredito que o sindicalismo mudou em uma década. Nesse período o sindicalismo foi muito atacado com a reforma trabalhista e a reforma da Previdência, por exemplo. O movimento sindical foi atacado para ser inviabilizado. Agora o movimento sindical passa por mudanças, e precisa mudar porque o mundo do trabalho mudou. 

CAPITALSOCIAL – O mundo do trabalho mudou tanto que os sindicalistas parecem zonzos com as questões mais candentes. Não há mais espaços fiscais a generosidades protetivas. O fim do Imposto Sindical desnudou a incapacidade diretiva de entidades que se locupletaram de compulsoriedades orçamentárias. A reforma trabalhista está longe de apresentar os resultados necessários, mas mesmo assim oferece cardápio de mudanças que indicam tanto aperfeiçoamento quanto mais desafio organizacional aos sindicatos. Sem mexer no queijo do Estado perdulário, não haverá sociedade menos desigual.

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