Sociedade

Uma vez Borralheira,
sempre Borralheira (3)

  DANIEL LIMA - 04/05/2022

GRANDE ABC – Estamos de volta depois do cafezinho, mas peço a todos que, antes de assumirem respectivos lugares na mesa, prestem atenção a um pedido que vou fazer. Se não atenderem, decido eu mesmo, de forma autocrática. O que não seria novidade alguma no mundo em que vivemos. Anfitrião tem todo o direito de definir quem é quem na ocupação de nossa mesa.  

SANTO ANDRÉ – Mas já não esgotamos a geometria?  

SÃO BERNARDO – É verdade, vamos pular esse capítulo.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Estou começando a achar que o Grande ABC quer demonstrar um centralismo que não é bom para o futuro da região. Há outras esferas de poder que não podem ser peitadas.   

CIDADE DE SÃO PAULO – Isso é coisa de Gata Borralheira. Coisa de quem precisa mostrar o que não é para sufocar o que tem medo de ser.  

DIADEMA – Já vem a Capital com filosofias que demonstram ser mais madura que todos aqui da região. Sabedoria é sabedoria.   

RIO GRANDE DA SERRA – Seja o que for, vamos em frente.  Não apito nada mesmo.  

RIBEIRÃO PIRES – Nem eu.  

MAUÁ – Dou meus pitacos, senão fecho a turma da Petroquímica e vocês vão ver o que é bom para a tosse. Sem combustível e sem petroquímicos paro tudo.   

GRANDE ABC – Desculpe, mas tenho que organizar essa bagaça e vou ser breve. Precisamos apurar o lugar de cada um nessa mesa retangular. Não saio de jeito nenhum da cabeceira principal e o Estado fica com a cabeceira inferior. Os demais, ou seja, os sete anões, desculpe, os sete municípios da região, e a Cidade de São Paulo, devem se organizar no espaço de acordo com o que chamaria de identidade política.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Quer dizer então que esgotamos os debates sobre a geometria da mesa e agora vamos para política da mesa?  

CIDADE DE SÃO PAULO – Pelo que entendi, acho que é isso mesmo.  

DIADEMA – Ora, ora, turma, conheço política como ninguém e as nuances da política como poucos. Está na cara que o Grande ABC quer que a gente se ajeite nas laterais de acordo com os interesses e vocações de nossa população.  

GRANDE ABC – É isso mesmo, Diadema.  

SÃO CAETANO – Então vamos em frente. Temos muita coisa a debater ainda. Antes que as portas do Residencial Grande ABC se fechem.  

GRANDE ABC – Fechar não fecham, porque vamos esgotar tudo sem hora delimitada, mas é importante definir os lugares nas laterais da mesa. Espero que a própria família dos sete irmãos fundamente princípios. Família dos sete irmãos é força de expressão, claro, porque o que temos aqui é mesmo cada um para o lado que mais convém.   

CIDADE DE SÃO PAULO – Posso tomar a dianteira? Afinal, se não sobrar espaço para mim, posso ser violentada na personalidade geopolítica.  

GRANDE ABC – Pode sim, em respeito à sua pujança, mas fica consignado que não ocupará nenhuma cadeira lateral enquanto os convidados da região não forem distribuídos. Você não se incomodará com isso porque estando em qualquer posição na lateral é maior que qualquer um que ocupar a lateral.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Não é bem assim, mas vou esperar. Se me restar uma cadeira incompatível com minhas estranhas, vou exigir mudança.   

SÃO BERNARDO – Se é para começar, começo já: quero ficar à esquerda, porque é assim que a turma me vê.  Sabe como é né, movimento sindical, montadores e autopeças, força do trabalhismo industrial. Por mais que a gente esteja meio perdido, caindo pelo centro, pela centro-direita, não há como contestar que estamos mais para a centro-esquerda do que para a centro-direita.   

GRANDE ABC – Não vejo como contestar. E, pelo que observo, todos concordam. Então ficamos assim:  a primeira cadeira lateral à minha esquerda é de São Bernardo.  

DIADEMA – Só faltava alguém dizer que São Bernardo não é de esquerda, de centro-esquerda. Somos parceiras nessa jornada, embora, cá entre nós, eu seja mais verdadeiramente socialista do que São Bernardo. Aqui a direita no poder é exceção. Em São Bernardo é quase uma rotina porque minha turma sempre desdenhou da Prefeitura. Até que apareceu um sindicalista de verdade e mudou tudo.  

SÃO BERNARDO – Obrigado, Diadema. Mas temos de ficar ligadíssimos porque a direita e o centro tomaram o Paço Municipal e estão oferecendo um cardápio indigesto para a gente.   

SANTO ANDRÉ – Agora é minha vez. Vou ficar na primeira cadeira à direita mais próximo de você, Grande ABC. Minha genealogia econômica é outra. Sou menos trabalhador e mais empreendedor privado do que São Bernardo. Está certo que andaram fazendo um rapa na indústria de pequeno porte, mas ainda resistimos. Os cromossomos de Santo André é diferente de São Bernardo. Basta ver os mapas eleitorais, principalmente depois que o PT sofreu barbaridade com a Lava Jato. Engolimos a esquerda aqui.  

GRANDE ABC – Sei disso, sei disso. Tanto engoliu que a esquerda está disfarçada de centro e de direita na Prefeitura. Muita gente esquerdista arrumou uma boquinha com a direita que assumiu o poder. A direita de Santo André precisava de combustível da esquerda. Juntou a fome com a vontade de comer.   

SÃO CAETANO – Vou ficar ao lado de Santo André. Também à sua direita, Grande ABC. Saí da costela político-administrativa de Santo André naquela onda de emancipação na metade do século passado, mas continuamos parecidas, embora meu território favoreça a manutenção da qualidade de vida que Santo André perdeu com a expansão demográfica e, cá entre nós, principalmente porque vivo mais de duas décadas de congelamento demográfico. Ou seja, tenho uma direita e uma centro-direita muito mais uniformes. E populacional a olhos vistos, mantenho minhas forças conservadoras e por isso mesmo não teria sentido ficar mais próxima de São Bernardo.   

DIADEMA – Nem de mim, São Caetano, nem de mim. Você está mais à direita de Santo André do que Santo André à direita de São Bernardo. Você é direita desde muito tempo. Também, a população não cresce, os grupos políticos são conservadores e a esquerda só chegou indiretamente ao poder outro dia porque tinha dinheiro farto e apoiou o candidato da direita que combateu uma mulher indicada pelo prefeito.  

GRANDE ABC – Estou gostando da autocrítica, caro São Caetano. Dizer que é conservador, de direita, já foi pecado capital. O ambiente mudou significativamente desde que apareceu uma facada e um presidente maluco. Está certo que há exageros, intolerâncias, mas isso aí é outra coisa. São Caetano não precisa ser intolerante porque não existe polarização. Falta esquerda para a polarização.  

DIADEMA – Não preciso nem explicar porque estou ao lado de São Bernardo, à sua esquerda, Grande ABC. Nasci da costela geográfica de São Bernardo e em seguida ganhei a mesma musculatura trabalhista com empresas que dão suprimento ao setor metalúrgico da nossa vizinha. Estou perdendo fôlego econômico desde o começo do século, mas não vamos falar nisso não.   

RIBEIRÃO PIRES – Fico à direita ao lado de Santo André e de São Caetano. Não preciso me estender que sou uma legítima herdeira de Santo André em tamanho menor. Até mesmo na perda do potencial da indústria tenho os mesmos problemas de Santo André. Minha população é conservadora quase tanto São Caetano e muita próxima de Santo André.  

MAUÁ – Sou meio dividida entre direita e esquerda, mas o PT tem mais habilidade para conquistar minha turma, por isso prefiro ficar à esquerda da cabeceira do Grande ABC, ao lado de São Bernardo e Diadema. Estou longe das duas coirmãs geográficas, mas bem perto da coragem político-ideológico.   

RIO GRANDE DA SERRA – Também acho que tenho o perfil mais adequado à esquerda e, portanto, fico aqui na última cadeira da mesa, mais próxima do Estado de São Paulo, na parte inferior da mesa. Disse outro dia num grupo de amigos que sou uma esquerda retardatária porque estou no extremo do Grande ABC. A esquerda demorou para chegar aqui e agora vai ser difícil sair. Mas, cá entre nós, sou uma esquerda tão moderna que até pareço com a direita. Essa é a vantagem de ser pequena. A gente finge que é uma coisa, mas é outra, e finge que é outra coisa e é uma coisa. Quem precisa de apoio de terceiros não vê cor de camisa partidária.  

GRANDE ABC – Sempre achei Rio Grande da Serra muito esperto. Com esse jeitinho de coitadinho, de rejeitado, vai comendo pelas beiradas.   

ESTADO DE SÃO PAULO – Parece que foi combinado porque não admitiria de forma alguma ficar à esquerda do Grande ABC. Sou de direita desde sempre. Basta ver quem andou ocupando o Palácio dos Bandeirantes nas últimas três décadas. Sei que neste ano estou correndo risco. A turma do terno e da gravata andou se lambuzando com alguns problemas e contou com um mandachuva que quebrou a unidade ideológica.   

GRANDE ABC – Viram como foi fácil distribuir espacialmente todos vocês, respeitando-se o DNA político e ideológico? Não sei por que não pensei nisso assim de vocês chegarem aqui. Teria sido mais fácil, mas nada disso vai nos atropelar. Francamente, nem me lembro como cada um de vocês estava distribuído nessa mesa antes de tomar o cafezinho. Lembro, claro, de algumas posições, mas não do conjunto da obra. Agora tudo está resolvido.   

ESTADO DE SÃO PAULO – Então você está satisfeito, Grande ABC?  

GRANDE ABC – Não necessariamente satisfeito. Acho que o melhor é dizer que cai na real. Muitas vezes a gente despreza quando fala em união regional. Somos um conjunto de sete municípios divididos que pretendem passar por cima de todos os vetores ideológicos e agir em conjunto.  

CIDADE DE SÃO PAULO – Reconheço que a situação dos sete anões, ou melhor, dos sete vizinhos, é muito mais complexa que a minha. Meus poderes de incisão de metodologia que conciliaria ramificações ideológicas estão nas urnas a cada eleição. Já vocês, gataborralheiras, estão em todas as urnas unificadas em cada distrito. Meus poderes de decisão são maiores, já disse isso.  

GRANDE ABC – Então ficamos assim: Santo André, São Caetano e Ribeirão Pires ficam à minha direita enquanto São Bernardo, Diadema, Mauá e Rio Grande da Serra ficam à esquerda. E a Cidade de Paulo fica também à direita.  

ESTADO DE SÃO PAULO -- E agora, Grande ABC, o que você pretende?  

GRANDE ABC – Ora bolas, é claro que fica mais fácil tratar com cada um de vocês. Basta olhar à direita para saber a demanda que virá. E basta olhar à esquerda para descobrir o que os opositores pretendem.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Acho que o Grande ABC está equivocado. Saber que pito ideológico cada banda toca é uma coisa, agora, tratar essa situação como ferramenta de ação coletiva exige mais que isso. É preciso harmonizar as relações. Se vocês não se entenderem internamente, não vão conseguir absolutamente nada externamente.  

GRANDE ABC – O Estado de São Paulo tem razão no raciocínio, mas talvez não tenha entendido o que quis dizer. Quando falo que é preciso entender de que lado vem a demanda, não quero que vejam que apostaria em administrar rupturas. O que pretendo mesmo, e por isso estamos aqui, é amalgamar rupturas.   

CIDADE DE SÃO PAULO – Está na cara que o Grande ABC olha no espelho e fica fulo da vida porque não me vê. Ou seja, o Grande ABC quer que quer ser eu, e isso não é sinal de fraqueza. Seria o fim da picada continuarem com os divisionismos internos que se agigantam nos interesses individuais externos. Mirem em mim. Sou mesmo uma vizinha poderosa. Mirem de verdade, mas sem inveja de minha grandiosidade. Olho vivo na minha unicidade territorial e administrativa. Já não é fácil controlar os dissidentes, aqueles que internamente se dividem em siglas partidárias, então o que seria suportar esquartejamento político-administrativo?  

GRANDE ABC – Espetáculo de doutrinação, Cidade de São Paulo. Esse é o nosso propósito desde sempre. Criamos o Cube dos Prefeitos para isso, a Agência de Desenvolvimento Econômico para isso, o Fórum da Cidadania para isso, a Câmara Regional do Grande ABC para isso. E tudo foi água abaixo. Só restaram esqueletos do Clube dos Prefeitos e da Agência. São penduricalhos, caríssima Cidade de São Paulo.   

SÃO BERNARDO – Acho que não esperámos por essa lição de obviedade da Cidade de São Paulo. Precisou vir alguém de fora para nos dar uma lição de humildade e pragmatismo. E colocar o ovo de pé.  

SANTO ANDRÉ – Reconheço que demos uma trombada na lógica. Estamos à deriva.   

DIADEMA – Nem pensem em me recriminar porque não tenho participado de quase nada que diz respeito ao Grande ABC nos últimos anos. Não venham me dizer que estou tão deslocada geograficamente, lá na ponta sul da Capital, e que por isso mesmo não visto a camisa da região. Acontece que preciso ser tocada. Nada de assédio, claro. Tocada no sentido figurado. Se Santo André e São Bernardo, que são os maiorais, não se entendem e não avançam na regionalidade, que força tenho para mudar a situação?  

MAUÁ – Não quero dizer nada não, tampouco arrumar encrenca, mas acho que Diadema está arrumando uma boa desculpa para se afastar das instâncias regionais. Como sou esperta, vou pegar carona. Que se virem Santo André e São Bernardo, que respondem por quase 60% do PIB da região.  

RIO GRANDE DA SERRA – Nesse assunto sei que também não sou nada importante. Quem vai ligar para mim, aqui no outro extremo do Grande ABC e sendo o que sou, uma mosquinha perto de Diadema, minha vizinha mais distante? Até me deram outro dia a presidência do Clube dos Prefeitos, mas sei que isso é apenas uma benemerência por causa da obrigatoriedade de rodízio do que sobra quando ninguém quer o cargo ou não pode ocupá-lo por causa do estatuto.   

GRANDE ABC – Quem disser nesta mesa que Rio Grande da Serra precisa de divã institucional cometerá uma grande asneira. A facilidade que Rio Grande tem de entender o jogo de poder na região é típica de quem não comete autoengano. Melhor assim.  

RIBEIRÃO PIRES – Não quero ser indelicado. Por ser vizinha bem próxima, Rio Grande da Serra poderia me retaliar e interditar a estrada que nos liga e, dessa forma, impedir que muitos trabalhadores possam trafegar normalmente, mas bem que merece um apelido com pitada de maldade para reforçar o que disse o Grande ABC sobre a facilidade de leitura institucional que esgrime.  

GRANDE ABC – Pode falar, Ribeirão Pires. Acho que sempre cabe uma pitadinha de brincadeira, senão esse encontro fica chato demais.   

RIBEIRÃO PIRES – Está bem, Grande ABC. Não é nada de mais dizer que ao invés de chamar Rio Grande da Serra de Rio Grande da Serra, porque o nome é muito maior que suas riquezas, deveríamos chamar de zerovirguladois, por extenso.  

GRANDE ABC – Entendi, Ribeirão Pires. Zerovirguladois por extenso é uma referência clara e direta à participação de Rio Grande da Serra na economia regional?  

RIBEIRÃO PIRES – Exato.  

GRANDE ABC – Mas não fica bem nem como brincadeira, porque você poderia ser a próxima vítima.  

RIBEIRÃO PIRES -- Como assim?  

GRANDE ABC – Esqueceu que você poderia ser chamado de zerovirguladoisvezesdez, assim mesmo por extenso? Sua economia é 10 vezes maior que Rio Grande da Serra, mas come poeira das demais.  

RIBEIRÃO PIRES – Você tem razão, é melhor mesmo esquecer esse treco.  

GRANDE ABC – Vamos colocar ordem na pauta. Agora vamos falar de alguém que deveria estar aqui, mas não está, embora estivesse no primeiro encontro há exatamente 20 anos. O nome dela saiu assim quase não querendo na primeira etapa desse nosso dia, mas agora temos que botar o dedo na ferida.  

ESTADO DE SÃO PAULO – Sei de quem você está falando. E você tem razão em tocar nesse assunto. Brasília não pode ficar ausente de nossos encontros. Mesmo que não se tenha reservado uma cadeira para que se acomodasse.

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