Entre o Bom Emprego e o
Bom Prato, o que prefere?
DANIEL LIMA - 05/05/2022
É claro que o Estado em diferentes esferas tem obrigação moral de olhar e dar atenção aos desvalidos sociais, mas o mesmo Estado em diferentes esferas também tem obrigação moral de se preocupar com as potencialidades sociais.
Tradução: quanto mais unidades do programa Bom Prato o Grande ABC oferecer aos pobres e miseráveis, mais se constatará que estamos no bico do corvo econômico.
A mídia regional publica hoje que o governo do Estado, agora sob o comando de Rodrigo Garcia, vice que concorre à sucessão de João Doria, vai inaugurar nova unidade do Bom Prato em Santo André. Outros municípios locais já foram e continuarão a ser contemplados. Nossa miséria não tem limites.
Juntam-se a isso os feirões de emprego, que a Prefeitura de São Bernardo deflagrou numa iniciativa que aproxima empresas e trabalhadores, e temos o retrato perfeito do esvaziamento econômico.
OFERTA E DEMANDA
Emprego formal-- mesmo que de baixa qualidade remuneratória -- virou a salvação da lavoura. A demanda é muito maior que a oferta e isso se reflete numa equação capitalista que somente os extremistas condenam, ou seja, na queda da média salarial.
Dados do Ministério do Trabalho que já traduzi nestas páginas comprovam essa corrida desigual.
Quando o Estado funciona mal e porcamente mesmo com asfixiante carga tributária, não há inteligência e ideologia que resistam: as anomalia começam no topo da pirâmide institucional.
PREÇO A PAGAR
O capitalismo paga o pato, embora não faltem capitalistas que exigiriam duras condenações. Está aí o mercado imobiliário que não me deixa na mão argumentativa. Quadrilhas dominam a cena e contaminam a banda saudável.
Um em cada cinco famílias residentes no Grande ABC se enquadra nos critério estatísticos de pobres e miseráveis. É muita gente. A média nacional é maior, claro. Trata-se de um terço a frequentar esse esquadrinhamento socioeconômico.
A distância entre o Grande ABC e o Brasil no campo dos excluídos já foi bem maior. Como a região perdeu mobilidade social, as médias se aproximam. Do jeito que vai, vamos virar um Brasil que não deu certo.
Por enquanto somos um Grande ABC que deu certo, entrou em paralisia e agora é um Grande ABC que dá errado.
SÃO CAETANO TRES VEZES
Mas o Grande ABC que dá errado para a quase totalidade da população é um Grande ABC que dá mais que certo para os mandachuvas e mandachuvinhas que se espalham por todos os setores, sempre sob a proteção dos podres poderes políticos dominadores da mídia de negócios disfarçada de mídia de informações.
E só não temos um contingente ainda maior de excluídos porque programas sociais diversos de socorro ao orçamento familiar, do governo federal e do governo estadual, além de ações municipais, reduzem o impacto. Tanto quanto perpetuam o assistencialismo precificado nas eleições supostamente democráticas.
Em números exatos, segundo o PIB do Consumo da Consultoria IPC Marketing, que publiquei ontem, são 184.319 famílias enquadradas nas condições de pobres e miseráveis de um total de 970 mil moradias no Grande ABC.
São três vezes a população de São Caetano praticamente isoladas do mundo real.
SEIS EM DEZ
Quando se junta essa turma de deserdados à turma meia-boca, por assim dizer, da Classe C, uma Classe C endeusada ainda recentemente, mas que não passa de universo sujeito a chuvas e trovoadas de fragilidades, temos praticamente seis em cada 10 moradores do Grande ABC em situação de risco ou de degringolada econômica familiar.
Não disponho de dados atualizados da capacidade de atendimento do Bom Prato no Grande ABC. A mídia que hoje divulga o investimento em Santo André é a mesma mídia geralmente sem memória que poderia dar a dimensão desse programa.
E assim essa mesma mídia se comporta em relação a tantas outras coisas. Esse é um viés sobre o qual muito já martelei nas incursões como ombudsman autorizado e não autorizado – e também foi objeto do livro “Meias Verdades”, publicado há quase 20 anos num chute certeiro na fuça do corporativismo engabelador.
ESQUECIMENTO SELETIVO
O passado recente ou remoto geralmente não frequenta o radar do jornalismo noticioso diário. Exceto quando convém.
Aliás, quando convém, republicam-se matérias naftalescas. O objetivo é azucrinar quem no presente toma decisões que no passado foram abafadas por outros interesses.
Jornalismo noticioso é o jornalismo relatorial, que deixa os entrevistados falarem a vontade. Empresta credibilidade a fanfarronices.
A mídia, principalmente a mídia impressa nacional, antiga e velha de guerra, detesta as redes sociais porque as redes sociais pouco habilidosas no trato da verdade, mesmo quando a verdade é irretocável, desmascara manipulações profissionais arrogantes.
UMA PROVOCAÇÃO
A manchetíssima aí em cima que evoca Bom Emprego e Bom Prato é uma provocação no bom sentido da expressão.
A sociedade consumidora de informações precisa ser tocada permanentemente. Sair do piloto automático de ler apenas por ler é um alerta obrigatório de quem exercita a função de agente social de comunicação.
Está mais que na cara que o calendário de abertura de novas unidades do Bom Prato está em sintonia com o calendário eleitoral.
É um direito marquetológico dos candidatos incursionarem por essas veredas. É o que chamaria de oportunismo aceitável. Faz parte do show na maioria dos lugares do planeta. E se intensiva na medida em que o terreno social é fértil.
É uma pena, entretanto, que a contrapartida do Bom Prato não seja o Bom Emprego.
CELSO DANIEL
Diferentemente disso. No Grande ABC de um terciário sem valor agregado (lá atrás Celso Daniel me concedeu uma entrevista antológica sobre isso, porque Celso Daniel não foi um prefeito varejista), o que se registra são salários e direitos trabalhistas muito aquém dos consolidados na indústria de transformação.
No fundo, Bom Emprego passou a ser Qualquer Emprego, desde que se reduzam as carências sociais dos excluídos que daqui a pouco passarão de 200 mil famílias na região. Multipliquem cada família por três moradores, em média, e vejam o que dá.
Alguém tem dúvida de que tanto no ambiente regional quanto estadual e federal não há indicativos de que haveremos de encontrar o rumo e o prumo num mundo que se desglobaliza como tática defensivista à contenção dos percalços geopolíticos e pandêmicos?
FESTEJAR ANTÍDOTO
O pior de tudo isso é que por falta de lideranças de verdade, dessas que pensam nos próximos 20 anos e agem diariamente nesse sentido, estamos dando sinais claros de que passaremos batidos e mal-pagos nos próximos tempos de reorganização produtiva.
Que cada Bom Prato seja bem-vindo ao Grande ABC, mas que o Bom Emprego seja o antídoto a ser comemorado pela mídia em geral.
Quando há inversão desses papeis, é inevitável que se chegue à conclusão de que preferimos festejar o que é essencialmente o reflexo de precariedades e ignorar o que é estruturalmente reformista.
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