Sociedade

Como contribuir para alterar
o ambiente de esperteza geral?

  DANIEL LIMA - 02/12/2021

O ambiente público e o ambiente privado são campos de prova de comprometimento social e pessoal. Muitos soçobram no caminho de pedras porque fazem uso de estratagemas que flertam com a bandidagem ética e moral.  

Para não tornar esse texto supostamente refinado demais, vou para a prática de dois exemplos emblemáticos porque abundantes.  

Isso mesmo: a prática significa dar pelo menos dois exemplos de como o individualismo e o corporativismo, quando não o marquetismo, destemperam o prato de civilidade e respeito.  

Peguemos um exemplo supostamente ficcional. Coloque-se o leitor na seguinte situação: 

a. Você é dono de um veículo cujo interessado em adquiri-lo lhe pede três dias de prazo para arranjar o dinheiro. Você concorda. 

b. O suposto comprador não exerce o direito de compra do veículo e é informado de que há uma proposta de um terceiro.  

c. O primeiro interessado na compra do veículo não arruma o dinheiro prometido. Ou seja: o prazo que lhe conferia prioridade de compra desaparece. Três dias de prazo se esgotam.  

d. Mais dias se passam. Muito mais dias. Alertado pelo proprietário do veículo de que havia um compromisso condicionado com um segundo interessado, o primeiro interessado reage com arrogância. Diz que o dono do veículo não pode fazer o negócio, como se proprietário do veículo fosse.  

e. O dono do veículo estica o quanto é possível o prazo. De três dias, amplia a prioridade para quase dois meses. O dono de veículo não queria que o interessado entrasse num barco furado de financiamento emergencial, por isso preferiu colaborar.  

f. O primeiro interessado segue pretendendo impedir a venda. Frustra-se claramente com o fechamento do negócio com o outro interessado.  

g. Passo seguinte: o comprador frustrado, incapaz de cumprir a promessa de arranjar o dinheiro mesmo com o prazo dilatado, parte para uma ofensiva canhestra, de tentar desclassificar o vendedor do veículo. E se utiliza inclusive do falseamento de mensagens de aplicativo de telefone para tanto. O que era um encadeamento de fatos e condições entranhadas nas tratativas, virou uma seleção capciosa de frases fora do contexto. A premissa flagrantemente de vagabundagem defensiva é impor uma versão mentirosa.  

Mais um exemplo   

Este é um exemplo de relações privadas retirada da imaginação ou de fatos reais, isso não importa.  

Agora vamos a um caso de relação social, de consumo de informações.  

a. Imagine uma liderança de classe empresarial que, instada numa reportagem, desenha um quadro econômico regional em que prevalece a grandiosidade de números, de demanda, de perspectivas. Um arco-íris de prosperidade. 

b. Tudo isso se dá num período em que a pandemia do Coronavírus ameaça a todos com nova variável identificada pelo alfabeto grego. 

c. Tudo isso se dá também diante de um quadro macroeconômico nacional e internacional de preocupações. De PIB desacelerado, de mercado de trabalho cada vez mais informalizado e rebaixado, de inflação perigosamente ascendente, de um ambiente político inquietante, de um ambiente regional longamente depreciado e tantas outras vicissitudes.  

d. É nesse ambiente regional que o presidente do Clube dos Construtores do Grande ABC, Milton Bigucci Júnior, se manifesta em entrevista ao Diário do Grande ABC. Com um adendo impressionante: mesmo depois da hecatombe pós-Dilma Rousseff, período no qual bancos comerciais viraram imobiliárias ante a inadimplência de centenas de milhares de adquirentes, Milton Bigucci Júnior sugere que as regras do jogo de financiamento sejam abrandadas ou relaxadas. Ou seja: que se estimule a demanda mesmo diante da gravidade econômica e social que está aí.   

e. Fosse apenas isso, a gravidade da proposta já seria alarmante. Há o adicional tenebroso de que mudaram as regras do jogo de financiamento imobiliário durante o governo de Michel Temer. Agora, os inadimplentes não poderão desistir das aquisições tendo a possibilidade concreta de recuperar parte das parcelas. Na maioria dos casos, perdem tudo. Absolutamente tudo.   

Trapaças humanas  

Tanto um caso quanto outro estão estruturalmente na sociedade. Ou seja: as trapaças em ambientes privados e as manipulações no ambiente público se cruzam de alguma forma como reprodução do continuo esgarçamento das relações sociais do gênero humano.   

Vale muitas vezes mais a esperteza, a prestidigitação verbal, a traquinagem documental, a manipulação estatística, a indigência crítica, do que a indignação, a exaltação, a contraposição veemente.  

A mentira inteira e a meia-verdade se locupletam onde viceja o parasitismo ético e moral. Onde há omissão dos probos, voyeurs de luxo.  

Dentro do que imagino no projeto do Pacto pela Governança Regional, não deve haver espaço a traquinagens semânticas, quanto mais às manipulações cabeludas. 

Primeiro porque são ervas daninhas para a sociedade. Segundo porque a prática desses expedientes se comprovou completamente destrutiva ao combinar ilusionismo desmobilizador da sociedade e perniciosidade grupal.   

Tanto numa situação quanto noutra, os prejuízos são incalculáveis, porque intensos e longevos.   

Sociedade doente  

Talvez para quem naturaliza e banaliza procedimentos atentatórias à fertilidade de capital social, expressão que em síntese significa uma sociedade ajustada em busca de uma convivência coletiva produtiva, soe como piada de salão tratar do ambiente regional e também privado nos termos propostos.  

Quando uma sociedade adoece e parte para o tudo ou nada, os níveis de compaixão e de solidariedade viram pó.   

Mais que isso: o certo vira errado e o errado é exaltado. Tudo em nome de uma falsidade incorrigível e destrutiva, ou seja, de uma orquestração tanto privada quanto pública que pauta as relações numa plataforma corrosiva aos interesses coletivos.  

Avenida da realidade   

Para não dizerem que não falo de flores, também tivemos na edição de hoje do Diário do Grande ABC uma exposição comedida das obras já contratadas para o Viaduto Santa Terezinha e arredores, na Avenida do Estado, em Santo André.  

Não se vendeu a ilusão de que o investimento recolocará Santo André do prefeito Paulinho Serra na rota de grandes negócios produtivos, porque, como se sabe, a Avenida do Estado é uma encrenca logística dos diabos.  

Mas, a bem da verdade, esse investimento público também não é um penduricalho no programa de obras de uma cidade castigada ao longo de décadas pela imprevidência no planejamento dos prefeitos de plantão. Trata-se de coisa muito maior que o varejismo administrativo indispensável no setor público, mas incapaz de mudar a rota desejada.  

O resumo dessa ópera de três faces é que não existe nada mais saudável à oxigenação da sociedade senão identificar o que é joio e o que é trigo nas relações sociais. O prevalecimento de pecados glorificados por interesses mesquinhos requer ações reativas que não podem se limitar a individualidades.  

Esperteza e esperteza  

O veículo vendido para quem ganhou prioridade de compra e os reparos à suposta febre de consumo do mercado imobiliário inserem-se como exceções nas relações corporativas e comunitárias, mas não podem ser silenciadas.  

Mais que isso: precisam ser multiplicadas como um grito de inconformismo. A Governança Regional não pode perder a oportunidade que se lhe oferece, caso seja mesmo instaurada.  

A premissa consagrada popularmente de que o mundo é dos espertos não pode reinar impunemente. Estamos nesse caso entre o advogado e político San Tiago Dantas e o humorista Barão de Itararé, pseudônimo de Apparicio Torelly.  

O primeiro, San Tiago, disse: “Nada está mais próximo do máximo de ingenuidade que o máximo de esperteza”, uma reflexão que se encaixa com precisão no caso do veículo colocado à venda.  

O Barão de Itararé sentenciou: “Os vivos são e serão sempre, cada vez mais, governados pelos mais vivos”. Aí entram os espertalhões sem compromisso com o amanhã.

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