Economia

Competitividade da região
vai muito além da região

  DANIEL LIMA - 23/04/2024

Mais uma vez pego carona numa entrevista do jornalismo de papel e me autoescalo entrevistado pirata. De fato, ajo como devo agir. Afinal de contas, sou autointitulado com todos os méritos (ou sou patético?) ombudsman do Grande ABC. Ou do ABC  Paulista, para ser mais preciso, já que deixamos de ser aquela grandiosidade nacional há muito tempo.

Desta vez me meto ao fim de cada resposta do contabilista, Kleber Paiva, ouvido em página inteira pelo Diário do Grande ABC a propósito do que o futuro nos espera.  

Vou reproduzir integralmente a publicação do Diário do Grande ABC, apondo a cada resposta do entrevistado o que avalio como pontos necessários à interpretação das informações. Fica a critério dos leitores a compreensão da pertinência ou não de minha participação. É assim que funciona o que costumo chamar de democracia informativa, detestada pela Velha Imprensa que aos poucos, entretanto, vai-se dando conta de que a roda do mundo já não gira como antes das redes sociais.

Como perceberão os leitores (e não existe nenhuma preocupação deste jornalista em definir o que se segue) tenho mais discordâncias do que concordâncias com o entrevistado. Aliás, o questionamento em si é bastante deficitário como conteúdo encaixado no conceito de regionalidade, que aparentemente é o que se pretendeu.

Discordo de imediato da manchete atribuída à entrevista, uma discordância não da edição em si, que está adequada às respostas, mas ao que chamaria de conteúdo emitido pelo entrevistado. O título “Cidades têm de fazer a lição de casa até 2032” não se sustenta, conforme replico com a manchetíssima que utilizo no topo desta análise. Não fosse o que chamamos de “ditadura de edição”, complementaria o título que escolhi (“Competitividade da região vai muito além da região”) com apêndice temporal (“e não tem data para maturação”). Acho que no que se segue explico essa ponderação que chamaria de corretiva ao enunciado do entrevistado.

Seguem a abertura da entrevista do Diário do Grande ABC, a primeira pergunta ao entrevistado e minha primeira intervenção como ombudsman do Grande ABC. Em seguida, em rodízio,  perguntas do Diário, respostas de Kleber Paiva e minhas ponderações:

DIÁRIO DO GRANDE ABC

Um dos mais renomados empresários do ramo contábil do Grande ABC e diretor do Instituto Fundação Santo André, Kleber Okumura Paiva chama a atenção para a necessidade dos municípios do Grande ABC se prepararem para a entrada em vigor definitiva da Reforma Tributária, em 2032, situação que, segundo ele, criará regras econômicas igualitárias e não permitirá mais a Guerra Fiscal, que acometeu a região nos últimos anos e pode ter contribuído para o processo de desindustrialização. O executivo fala sobre a necessidade das cidades reservarem áreas e atualizarem seus planos diretores de modo que propiciem a atração de empresas, sobretudo na área de transformação e tecnologia. Kleber Paiva também destaca a importância do Instituto para auxiliar o poder público nessas discussões.  

DIÁRIO DO GRANDE ABC

O que é o Instituto Fundação Santo André e qual a sua função?

KLEBER PAIVA

O Instituto Fundação Santo André é um braço de fomento à Fundação Santo André para buscar recursos por meio de serviços que ajudem a alimentar os contas da instituição. A entidade viveu anos dourados, teve um crescimento muito grande e chegou na casa dos 10 mil alunos. Criou a Faculdade de Engenharia e construiu novas instalações, o laboratório. Só que de alguns anos para cá houve o boom do ensino superior, o que aumentou a concorrência e reduziu bastante o número de alunos ingressando na instituição andreense. Outra coisa é que grande parte dos professores da instituição eram concursados, com estabilidade e com alto salários comparado ao mercado. Mais uma vez vem a concorrência pagando menores salários e tendo menos custo administrativo do que a Fundação. Desta maneira, a entidade teve que buscar novos meios de subsídios, precisando captar recursos por meio de parcerias com empresas tipo Mercedes ou Ford. Em determinado momento, discutiu-se a possibilidade dela prestar serviço para as Prefeituras e também para a iniciativa privada, e uma das formas sugeridas foi a criação do Instituto. A proposta passou pelo Conselho da instituição, teve a anuência do Ministério Público e então foi autorizada sua criação.

CAPITALSOCIAL

 A criação do que é entendido como um departamento que representaria especialidades técnicas dos quadros da Fundação Santo André é  importante ramal no mundo acadêmico do Grande ABC, mas, até que mais informações sejam possíveis captar, continua distante do ideal como potencial de recursos teóricos à instituição e, mais que isso, como  braço de regionalidade na área de Desenvolvimento Econômico. Ou seja: há um potencial enorme a ser explorado, inclusive fora do âmbito exclusivamente da Fundação Santo André. Descobriram um filão dirigido a corporações privadas com assessorias customizadas, mas distante, ainda, de repercussão e enraizamento como farol do ambiente produtivo regional. O Instituto FSA não parece à primeira vista e após consultas na Internet direcionado à disseminação de conhecimento regional mais amplo, no sentido mais generalizado  do que de especificidades e de acordo com a demanda de corporações.  Resta saber se o ambiente macrorregional, que rompe divisões produtivas específicas, contaria com profissionais habilitados a atuarem como consultores estratégicos. Essa matéria-prima é um vácuo regional.  

DIÁRIO DO GRANDE ABC

O Instituto tem cumprido esse papel de trazer recursos financeiros para a Fundação Santo André?

KLEBER PAIVA

Podemos dizer que o Instituto ainda engatinha. Nós temos um case, alguns trabalhos já executados de concursos, de educação, de escola de governo, o que tem servido para arrecadar alguns valores, mas nada substancial, que tenha impactado de forma significativa nos cofres da instituição. Porém, há uma expectativa de que nos próximos anos isso possa crescer.

CAPITALSOCIAL

A declaração complementar do entrevista só comprova um potencial mais expressivo a ser explorado.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

Com relação à saúde financeira da instituição, depois de ter enfrentado uma dura crise, é possível dizer que a Fundação Santo André está com as contas equilibradas, nos eixos?

KLEBER PAIVA

Sem dúvida. A Fundação Santo André hoje está em uma realidade financeira diferente, mas ainda não 100% confortável, porém, muito melhor do que anos atrás, como entre 2015 e 2018, por exemplo. Houve uma nova política administrativa instituída ainda pelo então reitor Francisco Milreu, que, por questões internas, acabou deixando a instituição. e continuada pelo atual reitor, Rodrigo Cutri, que tem feito um ótimo trabalho e ajudado muito a instituição. Foram obrigados a cortar na carne um quadro especial de docentes, fizeram uma renovação que permitiu sanear as finanças e a instituição vem conseguindo agregar novos alunos. Hoje, eu diria que a Fundação é muito viável e a perspectiva para os próximos anos é que ela só tenda a crescer.

CAPITALSOCIAL

A Fundação Santo André teve de passar por processo de lipoaspiração porque é assim que toca a banda da competitividade na área educacional. O emagrecimento era previsto antes mesmo do despertar mais agudo de empreendimentos privados invadirem a seara educacional, mas se acentuou com o desembarque de tecnologias e outras ferramentas que tornam a atividade enorme manancial de investimentos fora da tutela pública, que, como se sabe, é cada vez menos robusta por conta dos custos  elevados à manutenção da maquinaria pública.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

Como o Instituto Fundação Santo André pode contribuir com a regionalidade?

KLEBER PAIVA

Pode ajudar e muito diagnosticando as necessidades regionais e apontando caminhos para superar alguns gargalos existentes, sobretudo para o desenvolvimento econômico das sete cidades.

CAPITALSOCIAL

Esse é o grande desafio a ser atingido e superado. Não se tem informações disponíveis sobre o estoque de estudos e mesmo de resultados no âmbito regional sobre a atuação do instituto. Isso é um ponto negativo no sentido de densificação do projeto.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

E quais são os principais desafios, na sua avaliação?

KLEBER PAIVA

A questão logística, sem dúvida, o que considero fator preponderante para a região ser acometida pela guerra fiscal nos últimos anos. O Grande ABC não tem sido favorável para novos investimentos. Isso é fato. Agora, mais do que nunca, os municípios precisam se preparar para 2032, quando a Reforma Tributária entra definitivamente em vigor. Com isso, investir na região será tão interessante quanto investir em outro município. Deste modo, quem estiver mais bem preparado, reservado áreas dentro do Plano Diretor específicas para o investimento na indústria, sobretudo na indústria de transformação, que tem alto valor agregado, pode se dar bem.

CAPITALSOCIAL

Já escrevi dezenas de artigos sobre os efeitos deletérios da guerra fiscal na região. Trata-se de apenas um dos nós a serem desatados. A histórica desindustrialização da região, agudíssima ao longo dos anos, passa por outros vetores. A guerra fiscal combinada com o movimento sindical, com o Plano Real, com a destruição de pequenas e médias indústrias durante o governo Fernando Henrique Cardosa, a chegada do Rodoanel Mário Covas, esse conjunto de fatos, e alguns menos relevantes, explica e complica a situação da região. Sem contar aspectos macroeconômicos, macropolíticos e também geopolíticos. Perdemos quase toda a capacidade de reação para estancar os prejuízos, mas é exatamente por isso que necessitamos de organização e coletivismo. Um Gabinete Permanente de Crise Econômica é a melhor saída para começar a, primeiro, tapar os buracos de competitividade frustrada. Já escrevei centenas de análises sobre isso. Nossa logística é um dos maiores dramas de baixa influência no jogo estadual e nacional por investimentos privados.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

Fale um pouco mais sobre o problema de logística citado na questão anterior.

KLEBER PAIVA

Então, tirando a questão da guerra fiscal, o que sobra para o Grande ABC discutir são espaços para se montar as indústrias, por exemplo. Hoje, se for procurar pela região, dificilmente vamos encontrar locais que possam atrair investimentos. As Prefeituras dedicaram muitas áreas para construir habitações, mas acabaram esquecendo de deixar áreas para gerar riquezas, como a atração de indústrias das mais diversas áreas. Às vezes, tem quem queira produzir, mas não tem o local para poder montar uma indústria. E caso ainda exista um ou outro espaço, talvez já não sirva mais para aquele determinado tipo de ramo industrial porque há muitas moradias próximas e a área acabou se tornando hostil para o negócio. Então, recapitulando, entendo que a região precisa estar cada vez mais atenta à questão das áreas, locomoção, o fácil acesso às rodovias, Rodoanel e Porto de Santos. É isso que define o tipo de investimento que será atraído no futuro.

CAPITALSOCIAL

O entrevistado tem toda a razão quanto ao descaso em sincronizar o uso de espaços físicos em Santo André (e na região como um todo) ao fluxo demográfico, entre outras imbricações. O problema atual já não se resolve com quantidade de espaço físico industrial, mas com o modelo de investimentos industriais que devem prescindir do conceito antigo que levava  critério de dimensões físicas ao podium de prioridade. Tecnologia envolve menos tamanho e mais expertise e inovação. Entretanto, o nó logístico da região, território pressionado numa metrópole ensandecida, é fator determinante à perda de competitividade econômica e também de qualidade de vida. Estamos encalacrados e mal pagos.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

O sr. concorda que o processo de desindustrialização mudou o perfil econômico do Grande ABC?

KLEBER PAIVA

Sem dúvida. A região se tornou polo prestador de serviços, porém, prestador de serviço de baixo valor agregado. A grande maioria das empresas que hoje se instala por aqui é de atacarejos. Não quero depreciar a atividade, de forma alguma. É um setor que gera empregos. Quando eu falo que a região precisa se preparar, estou me referindo à atração de empresas que gerem riqueza social e financeira, como o ramo de tecnologia, por exemplo. E mais uma vez entra a importância do Instituto Fundação Santo André, que pode contribuir com a expertise do corpo docente da instituição e unir esforços com o poder público para encontrar caminhos para um futuro melhor para o Grande ABC.

CAPITALSOCIAL

A proposta do entrevistado passa necessariamente pela experiência dos acadêmicos que constam dos quadros do Instituto Fundação Santo André. Tem-se pouco conhecimento público sobre a entidade e, mais ainda, sobre os trabalhos mesmo que teóricos já colocados nas prateleiras de debate. Tecnologia é uma palavra de múltiplas intervenções colocadas no tabuleiro de soluções, mas não se pode esquecer que não há nada que provoque a concorrência por investimentos que não o que estiver correlacionado a tecnologia. Daí, a disputa é intensa e, nesse ponto, os critérios de definições vão muito além de localidade, mas de  um conjunto que possa sustentar competitividade, essa sim palavra-conceito mais instigante e definidora.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

A Assembleia Legislativa está levantando o debate sobre a necessidade de uma terceira rodovia que ligue a Capital ao Litoral. O governador Tarcísio de Freitas, inclusive, já autorizou estudos sobre o tema. O que você acha dessa iniciativa?

KLEBER PAIVA

Eu falei que, acabando com a guerra fiscal, investir no Grande ABC será tão interessante quanto investir em qualquer lugar. A região é o ponto mais próximo do maior porto da América Latina. Então, melhorar a malha viária só tornará a região ainda mais favorável para investimentos, sobretudo para a indústria da transformação. Uma terceira pista ligando a Capital ao Porto melhora para todo mundo, beneficia, inclusive, o escoamento de mercadorias e matérias-primas que vêm de outras localidades. O Estado de São Paulo ganha com isso.

CAPITALSOCIAL 

O fim da guerra fiscal por si só não assegurará o empate em condições de competividade da região em relação a outros territórios. Pior que isso: como a guerra fiscal permanecerá e se intensificará em vários territórios do País no setor que mais provoca transformações na região, a indústria automotiva e de autopeças, vamos continuar vulneráveis às intempéries. Dessa forma, continuaremos perdendo o jogo por investimentos entre outras razões porque o Custo ABC dentro do Custo Brasil sempre será oponente que nos espreitará. O que deve melhorar a situação orçamentária das prefeituras da região, e mesmo assim ao longo de décadas, num processo gradual, como impõe a reforma tributária, será a distribuição de recursos públicos de acordo com o consumo e não mais que a produção. A região é prejudicada demais nos critérios de repasses do ICMS exatamente porque o fator produção em queda histórica e o fator demográfico, em elevação constante, não se combinam. Diferentemente, portanto, de municípios menores, como Paulínia, e de alta geração de receita fiscal. O ICMS é deformador por natureza. Quem sofre com isso são os grandes municípios desindustrializados.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

O que mais o sr. enxerga como possibilidade de desenvolvimento econômico para a região?

KLEBER PAIVA

Por que não pensarmos em portos secos? É outro atrativo que entra naquilo que eu falei dos planos diretores, de pensar qual é o (Grande) ABC que nós queremos no futuro.

CAPITALSOCIAL

Os portos secos são escassos em geração de riqueza no sentido de força de tração de investimentos. É uma atividade-meio que, como condomínios logísticos, geram empregos de baixo valor agregado. E há condicionante ainda pior: nossa logística interna atrapalha a imposição dessa alternativa, exceto na região da Imigrantes e do Rodoanel. Fora São Bernardo, e mesmo assim com mitigações, os municípios da região estão estrebuchando com encalacramento  viários. Por isso o Rodoanel se tornou, neste século,  sobreposição da sangria industrial provocada por choques entre capital e trabalho. Perdemos e continuamos a perder plantas industriais. Fomos ultrapassados no conceito mais moderno de logística, que não é o percurso mais próximo entre dois ou mais pontos, mas o percurso mais econômico entre muitos pontos. Porto de Santos, Cumbica, Congonhas, tudo isso virou do avesso.

DIÁRIO DO GRANDE ABC

Outro assunto que o sr. tem abordado muito em suas entrevistas é a questão do Desenrola, do governo federal, programa para que as pessoas possam negociar suas dívidas e regularizar o nome na praça. Essa iniciativa tem funcionado?

KLEBER PAIVA

O programa Desenrola vem ajudando muita gente. Já são mais de R$ 40 bilhões negociados no País. Além de oferecer a oportunidade de negociar dívidas de até R$ 20 mil, o programa tem chamado a atenção para a questão da educação financeira, tema, inclusive, que entendo que deveria fazer parte do currículo escolar. Eu ainda não tenho estratificado o impacto do programa no Grande ABC, mas me parece que a adesão não tem atendido as expectativas. Até li nesse próprio Diário que o programa teria impactado somente cerca de 4% dos endividados da região. Se esses dados forem reais, acredito que está faltando o envolvimento do poder público municipal nesta questão. Falta auxílio na divulgação, no esclarecimento à população, bem como no desenvolvimento de políticas públicas a esse respeito. Talvez seja necessária uma força-tarefa entre as sete cidades e o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. É preciso unir forças com o governo federal. É preciso investir mais nessa pauta porque os cidadãos endividados são dentes a menos na engrenagem econômica dos municípios. Já o contribuinte que tem seu nome regular na praça é aquele que vai fazer girar a economia. Uma população saudável economicamente é um município saudável também.

CAPITALSOCIAL

O Desenrola é um programa de intervenções epidérmicas, sem influir em grau satisfatório nas entranhas de Desenvolvimento Econômico quando se imagina sentido estruturalmente transformador. O enrosco da região é muito mais em baixo, muito mais complexo e muito mais desafiador.

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