Regionalidade

Grande ABC partido e repartido
multiplica complicações e riscos

  DANIEL LIMA - 21/01/2021

Adaptei um ditado português para definir o balanço geral dos movimentos autonomistas do século passado, determinantes na reconfiguração da unidade territorial do Grande ABC em sete municípios. Quem parte e reparte e fica com muitas partes é burro ou não entende da arte. É isso mesmo. No livro “Complexo de Gata Borralheira”, que lancei em 2002, trato das idiossincrasias de um Grande ABC social, cultural e econômico dolorosamente piorado neste século. Somos um bicho-de-sete-cabeças sem controle.  

Sei que esse é temário ebulitivo, mas não resisto à abordagem nestes tempos que se consolidam ainda piores. A falta de regionalidade é letal a uma geoeconomia que, fosse elástica nos conceitos de integração, provavelmente seria menos vulnerável ao vírus chinês.  

Não que a unicidade territorial da região, caso mantida, sinalizasse um futuro maravilhoso ao longo das décadas. A classe política e a sociedade servil são de lascar por estas bandas. Mas teríamos mais possibilidade de mitigar os danos centrais e colaterais em situações economicamente previsíveis ou diante do imponderável sanitário.  

Nem São Caetano escapa  

Confesso que me lancei a este breve texto levado pelo amigo e grande jornalista Ademir Medici. Ninguém jamais o alcançará nas incursões pelo passado que em muito explica o presente e constrói as veredas do futuro de uma região que se perdeu no tempo.  

Ademir Medici é um arqueólogo de um municipalismo outrora centralizado num único território político-administrativo. Ele tem dado conta seguidamente dos movimentos autonomistas. Explica detalhadamente as transformações a partir de meados do século passado. Acompanho-o como perdigueiro.  

Estava decidido a afirmar que o único território que se deu bem nessa história toda de partir e repartir seria São Caetano. Mas uma reflexão atenta acionou o freio da cautela e acelerou a dosagem de ceticismo. Não é porque São Caetano conta com os melhores indicadores sociais da região que deva servir de exemplo eterno de sucesso dos autonomistas -- por mais bem intencionados e ousados que fossem.  

Desmoronamento contínuo 

O desmoronamento econômico neste século, antecedido de duas décadas do século passado, compromete cada vez mais a qualidade de vida de 160 mil moradores de São Caetano.  Há queda contínua da renda que afeta a qualidade de vida. São Caetano seria uma Moema do Grande ABC unificado. Como a diferença de que o bairro nobre da capital não dá sinais de esgotamento tão profundo. São Caetano está encalacrado logisticamente. Perdeu indústrias e só criou empresas de papel ou quase isso na área de serviços.  

Não quero nem tenho a intenção de condenar os movimentos autonomistas que, no contexto em que se desdobraram, reuniam valor intrínseco que ultrapassava os limites da disputa política. Incluíam, sim, valores outros que não podem ser desconsiderados.  

O tempo acabou mostrando que os pontos positivos se esboroaram quando a métrica é o território regional antigo, único.  

Num mundo cada vez mais doutrinado à produtividade de redes materiais e digitais, a compartimentação em sete pedaços compromete a dinâmica no enfrentamento aos desafios. Seria preciso muita competência de gestores públicos e associações de classe econômica e social para desfazer os contratempos e armadilhas. Entretanto, tanto uns quanto outros só emitem sinais de despreparo tanto no mapa municipalista quanto na ilusão de instituições que agregariam a região como um todo. 

Reservatório vazio 

Resumo da ópera? O Grande ABC é uma colcha de retalhos institucionais, econômicas e sociais que determinam diretamente a baixa capacidade de reação às situações inescapáveis e que vão muito além do vírus chinês, antecedidas que foram de desvios políticos, eleitorais e econômicos, entre outros.  

No fundo, como escrevi tantas vezes e pretendi ser didático ao extremo no livro “Complexo de Gata Borralheira”, somos um megacidade de araque.  

A expressão “Grande ABC” é um comboio em direção ao penhasco porque induz a sociedade a acreditar em algo que não existe, e, mais que isso, por não existir, sugere que as soluções serão mais factíveis.  

Ou seja: a regionalidade está longe de ser um reservatório ao qual o conjunto de quase três milhões de habitantes poderia se socorrer. Não temos volume morto de cidadania a ser requisitado em momentos decisivos. Para valer, não temos nem volume vivo de cidadania. Vivemos em permanente estiagem.  

Além das fronteiras  

Tenho permanente preocupação editorial de agregar os municípios do Grande ABC em confronto com outras áreas do Estado, principalmente. Criei o G-22, o Clube dos 20 Maiores Municípios do Estado de São Paulo, justamente com o objetivo de estabelecer confrontos tanto individuais por municípios quando regional tendo o Grande ABC como megacidade.  

Sempre lembro que Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra entram na contabilidade do G-22 apenas porque pertencem à região, já que não têm porte econômico para, individualmente, constar da relação. São Paulo, a cidade, fica de fora porque sozinha é praticamente a soma dos 20 maiores municípios.  

Aliás, exatamente por se descomunalmente grande, a Capital do Estado não serve para incursões comparativas quaisquer naqueles critérios estabelecidos. Tanto quanto não pode ser descartada preliminarmente de tudo que envolva a dinâmica do Grande ABC. 

A vizinha gigantesca do Grande ABC é um dos pontos centrais de “Complexo de Gata Borralheira”. A enfermidade cultural que nos assombra tem origem exatamente na grandeza do monstro que nos tormenta.  

Gestor de verdade  

O então prefeito Celso Daniel era um gestor de verdade. Nada a ver com o ocupante do Paço Municipal de Santo André nestes dias, que se autodefine gestor sem ter a ideia do crime conceitual que comete. Gestor é uma coisa bem diferente de fazedor de tarefas varejistas.  

Celso Daniel dizia com clareza intelectual o quando Santo André e o Grande ABC como um todo poderiam se beneficiar da vizinhança com a Capital que já transbordava deseconomias de escala -- como os economistas definem um espaço territorial que chegou à exaustão da dinâmica econômica e social.  

Sonhava Celso Daniel com um setor de serviços de ponta. O que temos é um terciário de baixo valor agregado. As administrações públicas, a partir de Luiz Tortorello em São Caetano, partiu para a guerra fiscal tendo o ISS como escudo. O vale-tudo não é o que se pode chamar de políticas públicas. São remendos temporários.  

Integração físico-material 

Recorro ao passado para dizer que o tempo fluiu e caímos do cavalo da inoperância e das divisões internas. Perdemos feio a corrida do terciário mais valorizado para as regiões de Osasco e Barueri, do outro lado do mapa da Região Metropolitana de São Paulo.  

O municipalismo de sete cabeças dançou frente a liderança de unidades vizinhas sem efeitos contaminadores de integração física. O Grande ABC dividido em sete pedaços, mas fisicamente conurbado, é a negação da sistemicidade construtiva em várias modalidades de ação dos agentes públicos e privados.  

Diferentemente, portanto, das individualidades dos municípios que integram a Grande Osasco e outras macroáreas da metrópole de 39 municípios. Naqueles casos, políticas públicas independem da vizinhança fisicamente distante entre si.  

Ou seja: preservam-se e exploram-se os pontos positivos das características político-administrativas locais. No Grande ABC essa autoridade municipal é abatida pela imperiosidade de um sistema de integração regional de políticas sobretudo econômicas. O território físico é pragmaticamente único em várias dimensões humanas. 

Consultem quem sabe  

Sem parecer pedante, mas correndo o risco de assim ser interpretado (e estou me lixando para isso) sugeriria aos novos integrantes das administrações municipais que iniciam ou assumem mandato no Grande ABC uma leitura atenta de “Complexo de Gata Borralheira”, disponível em forma digital nesta revista digital.  

Sem que seus novos auxiliares, especialmente vindos de fora, entendam a gênese de cada Município da região é impossível compreender o tamanho da encrenca. 

No caso específico do Clube dos Prefeitos, fracasso institucional que completou 30 anos em dezembro, o novo titular escolhido por Paulinho Serra e seus amigos ligados ao ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab, é indispensável um curso intensivo de regionalidade disponível tanto naquele livro quanto nesta revista digital.  

Não há nenhum veículo de comunicação da região que tenha se dedicado tanto à regionalidade no formato analítico e crítico. Textos relatoriais comuns na imprensa regional não servem de aprendizado para quem chega e a quem está na praça há mais tempo porque são exatamente relatoriais, ou seja, seguem a linha de declarações dos diretamente interessados em vender ilusões, os entrevistados da vez. Com as exceções que confirmam a regra de subserviência aos mandachuvas e mandachuvinhas públicos.   

Mico metropolitano 

Os autonomistas que partiram e repartiram o Grande ABC não têm culpa no cartório porque, por mais que exagerassem no entusiasmo de que colocariam os ovos de pé, os sucessores em cada Município não tiveram capacidade gerencial de evitar o desastre.  

O Grande ABC é um território de custos públicos sobrepostos na maquinaria de servidores tanto no Executivo quanto no Legislativo, além do Judiciário, claro. A ineficiência é o ponto-chave na prática de administração pública num mundo cada vez mais integrado e interdependente. Somos um mico metropolitano.

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