Regionalidade

Separatismo é a maior das 10
pragas da história da região

  DANIEL LIMA - 04/10/2023

Um assunto proibido, porque delicado e politicamente digno de estar numa cristaleira, à prova de qualquer esbarrão, o separatismo municipalista, também conhecido como movimento autonomista, é a maior das 10 pragas do ABC Paulista ao longo da história. As outras nove pragas serão igualmente tratadas aqui. 

Com exagero, claro, mas apenas no sentido metafórica de escrever, porque a inspiração vem mesmo das 10 Pragas do Egito, afirmaria que o separatismo municipalista da região corresponderia à primeira das pragas bíblicas, no caso “águas se transformaram em sangue”. 

O macromunicípio do tamanho de uma Belo Horizonte ou de uma Fortaleza, ao lado da principal Capital do País, foi transformado em Arquipélago Cinza, ou seja, sem cores, sem vibração, sem unidade estratégica. E, principalmente, sem identidade. É um quebra-cabeças às avessas. Deixou o que poderia aperfeiçoar e ganhou sete pedaços disformes que não se encaixam na lógica de regionalidade, conceito que poderia salvar o municipalismo indesejável. 

MAIOR DAS PRAGAS 

Hierarquizar a praga do municipalismo como a maior das 10 pragas da região significa que a anomalia formulada e aprovada pela população de cada território local permeia as demais de forma direta ou indireta. 

Afinal, quando se perde a integridade regional que, antes do separatismo, era integridade municipal, porque só havia um único endereço que demarcava o que se tornou região, os estragos estão contratados ao sabor do voluntarismo político.

Não dá para não dizer que o movimento emancipacionista não tenha sido orquestração política. Até prova em contrário, padres beneditinos não lideraram as ações.  Tampouco as irmãs carmelitas.  

Os danos contratados se perpetuarão na medida e na intensidade com que são subestimados. Como têm sido desde então. Somos um território em farrapos. 

MAIOR ARMADILHA 

O movimento autonomista teve razões específicas de ser, mas se tornou a maior armadilha ao futuro da região. Um futuro que chegou cobrando juros de municipalismo autárquico e correção monetária de isolacionismo institucional. Cruze essas duas inconformidades e teremos filhotes bastardos em cidadania e capital social. 

O separatismo deflagrado no século passado desdobrou em sete o que era apenas um Município. O movimento foi e continua sendo festejado. Chegamos ao ponto de grupos organizados estudarem e comemorarem aquelas ações e respectivas datas libertárias, enquanto o regionalismo é praticamente esquecido.  

Regionalidade não dá votos. Regionalidade dá trabalho. Regionalidade é conversa mole para trouxa dormir. 

Regionalidade não é outra coisa senão a tentativa até agora em vão de resgatar no campo de políticas públicas o que o separatismo dispensou com a criação de municípios num território então integrado, ou seja, sem fissuras legais e culturais. 

SEM REVERSÃO 

Quem parte e reparte um território potencialmente forte e acredita que a soma das partes compensaria a arte descobriu que a emenda do divisionismo é bem pior que o soneto da unicidade territorial supostamente discriminatória.

O separatismo municipalista do ABC Paulista, outrora Grande ABC, é a pior das 10 pragas da região porque é a matriz das demais no sentido cultural, econômico e social. Não há como fugir da realidade prática: por pior que possivelmente fosse a gestão desse território de 840 quilômetros quadrados tendo-se única e exclusivamente um prefeito, um Legislativo e tantos outros aparelhos institucionais únicos, nada é capaz de convencer que a multiplicação por sete tenha sido alternativa saudável. Diferentemente disso. Só comprometeu o potencial de reviravolta econômica e social.

Deixar escondido no quarto de despejo a enrascada em que se meteu a região quando decidiu produzir um bicho de sete cabeças autônomas e doutrinadas ao uso de viseiras exclusivistas é um grave erro. Essa constatação não embala condições de mudanças, com o ABC Paulista retornando ao que era no século passado, ou seja, um só endereço municipal. O prejuízo é irreversível. 

ALTERNATIVA FRÁGIL 

O que não pode continuar persistindo não é necessariamente nem mesmo certa idolatria ao movimento emancipacionista. Os defensores dessa tragédia têm razões específicas para promover o que bem entenderem. O que se lamenta é que a maioria que se dá conta dos desdobramentos daquele movimento não se mobiliza para valer. Aceita-se o resultado e ponto final. 

A prova provada de que o movimento emancipacionista foi e continua sendo um tiro no pé, porque os efeitos seguem a se irradiar, é a própria construção de um espaço específico para costurar o território fragmentado. 

O Clube dos Prefeitos, também chamado de Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, já completou três décadas e segue preso às arapucas de improdutividades. É muito difícil acreditar que alguém se salva de afogamento permanecendo sob as águas. 

NÁUFRAGO CONFESSO 

O Clube dos Prefeitos é o náufrago que requer oxigênio de prefeitos que só pensam mesmo em prefeitar, ou seja, cuidam exclusivamente dos próprios territórios nos quais foram eleitos. O desperdício de talentos provocado pelo separatismo municipalista da região se rivaliza com a perda de produtividade institucional. Quando qualquer problema em qualquer endereço municipal passa a ser um problema comum, que se repete nos endereços próximos, o que temos é improdutividade cumulativa. 

Imagine como seria possível acreditar que a logística interna da região, um caos que afasta investimentos e tira o sono e a saúde dos trabalhadores, poderia ser menos complexa caso não houvesse divisão físico-territorial e consequentes administradores públicos distintos. 

SAPOPEMBA É AQUI 

E na área de saúde, então, como seria mais vantajoso ter apenas um endereço municipal? A epidemia do coronavírus provou o quando a região dividida sofre e está tecnicamente pouco habilitada a administrar demandas. A soma de óbitos nos sete municípios, quando divididos por 100 mil habitantes, métrica internacional para aferir o quadro geral, mostrou que a região disputou pau a pau o campeonato de ineficiência e de gravidade com o distrito paulistano de Sapopemba. 

Fosse a gestão regional do Coronavírus exceção ditada por sortilégios, até que a regionalidade pretendida para corrigir as fissuras do municipalismo autonomista seria compreensível. 

O problema é que a região praticamente se esvai como estrutura institucional e técnica de resistência em praticamente tudo. Seja no transporte coletivo, na área de saúde, na Educação e, principalmente, em Desenvolvimento Econômico.

A onda autonomista no território do ABC Paulista colocou a perder as bases indescartáveis que o novo século exigiria como forma de competividade no campo econômico e ganhos de escala no atendimento social. 

SOMENTE O UMBIGO 

A ruptura carrega no ventre municipalista políticas públicas ditadas por administradores de plantão que enxergam apenas o espaço aberto pelo buraco da fechadura do próprio município. 

Estabeleceu-se na região ao longo dos anos uma rivalidade entre municípios que lembra areia na catraca da bicicleta do desenvolvimento geral. 

O personalismo conta com dupla camada de impropriedades. Primeiro porque elimina qualquer possibilidade de ganhos sistêmicos quando se compartilham responsabilidades e ações com a vizinhança. Segundo porque incrementa um ambiente social de antagonismo à mesma vizinhança. O que a unicidade territorial unia o municipalismo destrói. 

Quem tem dúvidas sobre os rescaldos deletérios do municipalismo advindo do separatismo do movimento emancipacionista poderia fazer um teste de memória ou prático. 

CADA UM PARA SI 

Procure saber se alguma vez na história, uma vez apenas, os representantes das associações comerciais e industriais se mobilizaram em conjunto para definirem e agirem sobre determinados rumos a ser implementados em termos de região. 

Em qualquer outro setor ou área prevalecem as mesmas barreiras municipalistas. O setor industrial, representado pelo Ciesp, braço da Fiesp, conta com três divisões na região. Há pouco diálogo entre seus representantes. Os problemas são semelhantes, mas não existe cooperação institucional permanente. A região em forma de macromunicípio teria mais possibilidade de se representar com poder de decisão na Avenida Paulista. O PIB Industrial seria o cartão de visitas. 

Mais um exemplo: o Clube dos Construtores do Grande ABC, oficialmente Associação dos Construtores (Acigabc) é um arremedo. Comandado por um mandachuva do setor há mais de 30 anos, a Acigabc de fato é um puxadinho da Família Bigucci. Não existe massa crítica que retire a entidade do servilismo à família. 

SEM CONSISTENCIA 

Embora pretensamente regional, a entidade é, portanto, inútil. Essa é uma contradição do municipalismo de representação que se explica exatamente porque a ausência de cultura de regionalidade que abarque várias atividades permite delinquências institucionais. A fragilidade é um campo fértil ao oportunismo. 

A tradução de tudo isso é que o emancipacionismo municipalista da região germinou a produção de iniquidades que, explorando os estragos gerais de fragmentação, se proclamam legitimamente representativas. Não passam de embustes. 

Fossem o sete municípios um só Município, provavelmente essa insolvência institucional seria mais visível e muito menos condescendente. A cidadania afloraria.

Essas questões colocadas são o que poderia ser chamado de varejismos que afetam um estrato mais nobre das relações sociais e econômicas. Trata-se do distanciamento dos sete municípios de alternativas geoeconômicas mais abrangentes. 

Fosse endereço único, o ABC Paulista possivelmente poderia ingressar em novos conceitos de regionalidade, tanto no ambiente nacional quando internacional. 

Relações contribuitivas entre partes separadas pela geografia poderiam ser instauradas. Nada disso, entretanto, prospera quando se tem sete endereços de baixíssima aderência regional. 

VISÕES DISTINTAS 

O ABC Paulista não é uma composição homogênea de matrizes econômicas setoriais quando visto separadamente, como de fato o é, mas se apresentaria diferente, mais compatível a incursões cooperativas, caso os tentáculos produtivos que ainda restam fossem observados de maneira integrada. 

O que parece distinto na matriz econômica de Santo André em relação a Diadema, por exemplo, perde força na medida em que outros endereços locais são acrescentados às análises. Há aproximações produtivas muitas vezes insuspeitas quando vistas de maneira conjunta. O mesmo vale a questões sociais. 

Haveria uma infinidade de políticas públicas e mesmo privadas caso a região não houvesse sido retalhada a partir de meados do século passado.  A praga da emancipação político-administrativa prevalece até agora. E não há mesmo sinalização em contrário. 

TROCANDO AS BOLAS 

O Clube dos Prefeitos ganhou conotação político-partidária que acentua o divisionismo regional. Vende-se a imagem de entidade resolutiva e integracionista que não corresponde à realidade dos fatos históricos e atuais. Cria-se um castelo de areia institucional que interessa mais de perto ao grupo político de plantão. 

O divisionismo territorial do ABC Paulista é um mal prolongado, improdutivo, acomodatício, demagógico e disfuncional. A praga do separatismo é a mais agressiva e longeva das 10 pragas que transformaram a região num território à deriva. 

As nove pragas que virão demonstrarão o quanto é improvável uma reviravolta em qualquer atividade econômica e social. A região sofre de septicemia crônica em todas as instâncias. 

Não aprendemos o básico da regionalidade que o mundo mais civilizado explora com organizações multilaterais criadas para tentar uniformizar políticas entre nações historicamente autônomas. O ABC Paulista se dá à extravagância de tornar o que era único um multiplicador de sete, numa inversão danosa de valores e resultados potenciais. 

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