Economia

Entre o céu planejado e
o inferno improvisado

  DANIEL LIMA - 16/04/2024

Acho que você deveria fazer esse breve passeio comigo. Passeio é força de expressão. Entre o passeio pretendido e o passeio vivido experimentei espécie de odisseia. Decidi por curiosidade, curiosidade mesmo, conhecer o outlet Premium, na Rodovia dos Imigrantes, território de São Bernardo, base fiscal de São Bernardo, mas muito distante do eixo urbano e consumidor de São Bernardo.

O Premium é espécie de Ilhas Malvinas de consumo em São Bernardo.   Ou um puxadinho do território de São Bernardo que tem pouco a ver com São Bernardo quando o assunto é consumo.

Na ida, percorri a distância de 18 quilômetros pelo Rodoanel e gostei. Só não gostei da volta, por dentro do Grande Alvarenga, imensidão de pobreza, de ambiente inseguro e de desorganização urbana que só o Estado pode proporcionar com a omissão, em muitos casos, também, de agentes privados mal representados em instituições mequetrefes.

O Estado brasileiro, em todas as esferas de poder, é a sobreposição do desleixo que algumas boas almas administrativas só amenizam, porque o mal acumulado é mal perpétuo. Fugir dessa lógica é fundamentalismo político-partidário-ideológico. O Estado latino-americano, principalmente, é um show de improdutividades.

MUNDOS DIFERENTES

Ver a improvisação urbana e econômica do Grande Alvarenga após acompanhar a exuberância planejada do Premium é um choque. Não que  desconhecesse previamente. É diferente saber antes, conhecer antes e, como num passe de mágica, viver as duas realidades quase que simultaneamente.  A mente tem dificuldade de assimilar situações tão distintas.

É emblemática a distinção do microcosmo do microcosmo do Brasil organizado por gente que tem compromisso com o sucesso empresarial e o microcosmo do microcosmo da bagunça em forma de fracasso do Brasil sem Estado competente.

O Grande Alvarenga é o Brasil oficial, produzido pela classe de tecnocratas, burocratas e políticos que só enxergam a próxima esquina eleitoral. O outlet Premium é o Brasil da exceção, do consumo como resultado do trabalho, da metodologia, do planejamento.

O Grande Alvarenga é o Grande ABC e o Brasil abrangentes, de assalariamento em declínio, de desemprego em alta, de informalidade abalada e sem futuro.

QUASE 500 MIL

Só neste século, o Grande ABC como um todo passou a contar com o peso complementar de 482.417 novas moradias. Multiplique por média arredondada de três pessoas por família a veja o tamanho da encrenca. Mas essa encrenca não é tudo. É apenas parte do todo.

A nova configuração econômico-financeira do Grande ABC do Grande Alvarenga retrata a quebra da mobilidade social. Pobres, miseráveis e classe média precária predominam no século. Classe média precária é o grosso da população que vive um pouco acima da pobreza e da miséria e longe da classe média tradicional e mais distante ainda dos ricos.

Ricos e classe média tradicional eram 37,54%  do Grande ABC antes de o novo século começar, em 1999, segundo estudos rigorosos da Consultoria IPC, do pesquisador Marcos Pazzini. Quando se contabiliza apenas este século, dentro dos quase 500 mil novas famílias, ricos e classe média tradicional são apenas 18,67%. Caiu à metade, portanto.

Isso não é coincidência. É consequência. Isso é regressão da mobilidade social. Ou mobilidade social regressiva. Ou qualquer outra expressão que os economistas de gabinete adoram desfilar. Mobilidade social reversa, mobilidade social descendente. Escolha.

GRANDES ALVARENGAS

A desaceleração econômica do Grande ABC, eufemismo de desindustrialização,  está refletida no Grande Alvarenga. Há dezenas de Grandes Alvarengas espalhados na região. O pior é que, proporcionalmente ao que ocorreu no  Brasil como um todo, colecionamos resultados piores neste século.

Já mostramos em outros textos que a velocidade de crescimento do PIB Nacional é muito superior à velocidade do PIB do Grande ABC. Corremos a uma velocidade 70% inferior. Imagine o estrago social quando se sabe que o PIB Nacional é aquela coisa horrorosa, que mal supera o crescimento demográfico. E não será diferente nos próximos anos com as lambanças e gastanças do quinto governo petista. Diferentemente dos dois primeiros.

Por essas e outras fico fulo da vida como jornalista que encara a profissão como um sacerdócio (e escrevo isso com raiva, porque sou um tolo ilhado por gente pragmática) quando o que consumo sobre a região se desloca do terreno da seriedade e criticidade e avança ao entretenimento. Principalmente quando são autoridades públicas e lideranças empresariais os entrevistados. Eles não precisam ser cortantes, mas o oposto não fica bem.

Não sei quem são mais insensíveis, se os entrevistadores ou os entrevistados. Tudo tem um limite. Mas na região sem eira nem beira ética e essencialmente objetiva, o vale-tudo está instaurado e consagrado.

POLIAMIDA SALVADORA

O outlet Premium é um espetáculo de organização empresarial, mas acho que não deveria ter ido à inauguração por curiosidade, repito, jornalística. Tanto fui por curiosidade que resisti a quase todas as compras potenciais. Só adquiri três camisetas de poliamida às minhas corridas diárias.

Poliamida não tem componente sintético e torna meus sete quilômetros mais confortáveis – ou menos complicados, porque correr não carrega satisfação semelhante a de comer, embora ajude a esticar a vida e a comilança.

Não deveria ter ido ao Premium na inauguração. Inauguração de qualquer coisa é um inferno. O acesso foi uma disputa por espaço físico incompatível com a rigidez também física dos veículos. Enfiar o veículo numa vaga de estacionamento exigiu muita paciência. Não carregasse como sempre uma companhia, porque não ando sem companhia, teria sido pior.

Duvido que nos dias seguintes tivemos algo semelhante. Brasileiro adora inauguração porque acredita que os preços são especiais. As camisetas que comprei não foram baratas, mas fiquei feliz porque poliamida não se encontra em qualquer estabelecimento. As misturas sintéticas são quase a totalidade das ofertas. Até estranhei que o vendedor da primeira loja em que entrei respondeu de pronto que havia poliamida de sobra. E havia mesmo.  

NA CARA DO GOL

São Bernardo de maior território físico da região vai ganhar em tributos com o dinheiro que os empreendedores vão ganhar no outlet da Imigrantes. Acho que se for realizada uma tomografia da clientela, poucos seriam não só de São Bernardo como do restante da região.

A localização está na cara do gol de quem vem de outros endereços da Grande São Paulo e turistas do Interior rumo à Baixada Santista. Os formuladores e executores do projeto não dão ponto sem nó.  A livre-iniciativa que não vive de benesses do Estado precisa ser qualificada, senão dança. E mesmo qualificada dança se bobear.

Quer um exemplo? O Shopping Atrium, em Santo André, é uma senhora burrada desde antes de inaugurar. Acho que foi mal planejado. Cantei todas as bolas. O empreendimento integrava o Projeto Cidade Pirelli, que foi para o vinagre com a morte de Celso Daniel. O Atrium virou um ramal de serviços públicos da Prefeitura. Até um Poupatempo de saúde está disponível. Os empreendedores que investiram ali se deram mal. Conheço uma meia dúzia que se arrepende até o último fio de cabelo.

INVASÕES E EVASÕES

Volto ao que interessa. As benditas invasões ao território de São Bernardo deverão ser permanentes com a chegada do outlet Premium, mas não vão compensar as tenebrosas evasões industriais ao longo de décadas, que reduziram a pó a mobilidade social.

Essa é uma das grandes diferenças entre fábrica e áreas de comércio e serviços. Há quem prefira subestimar ou ignorar esse fosso de empreendedorismo.  

Mas não é isso que conta agora. O fato é que tudo ali é resplandecentemente planejado e executado para seduzir consumidores. E quem estaciona num outlet de beira de estrada vai decidido a consumir. É diferente de um shopping urbano.

Já o Grande ABC é exemplar no processo de agressividade da deterioração social. Há quase 30 anos escrevi uma análise da qual jamais esquecerei. Tratei da nordestinização urbana da região, que adveio da desindustrialização fortemente agressiva dos anos 1990, quando o sindicalismo, a guerra fiscal e o desmonte da indústria de autopeças da região, entre outras matrizes industriais, provocaram êxodo das fábricas e tomada das ruas em forma de empreendedorismo por necessidade.

Nordestinização econômica é a proliferação de pequenos e improvisados negócios na periferia. Construções precárias de residências, com puxadinhos de garagens de veículos transformadas em tudo que possa supostamente gerar renda familiar, como cabeleireiros, bares, empórios, armazéns, essas coisas, proliferaram.

SÓ GRANDE ALVARENGA?

Venho acompanhando atentamente esses movimentos, mas nos últimos três anos, por conta daquele tiro, dei uma parada. O corpo ainda carrega sequelas que, paradoxalmente, apenas o efeito-inércia, das corridas diárias, superam. Mas resolvi enfrentar o desafio. E me desloquei de carro até o outlet. A situação é pior do que imaginava.

O Grande Alvarenga no interior do Grande ABC é um amontoado de moradias precárias, coladas entre si, maltratadas e sombrias. O comércio, então, é uma calamidade. Há mais negócios fechados do que abertos. É um desfilar de fracassos do empreendedorismo de ofertas sobrepostas e, portanto, canibalizadoras. Temos a construção do caos anos a fio a acender o pavio de um futuro explosivo.

A segurança pública na periferia da região, como nas periferias das metrópoles, é um conto macabro. Na região é pior, porque sobrevive a anos de riquezas que se foram. Em outras áreas metropolitanas, sem o passado de glórias da região, acostuma-se mais facilmente à miséria e à violência. A classe média precária pago o pato em maior escala. Sabe que dificilmente será classe média tradicional e muito menos rica. Briga para fugir da miséria e da pobreza. O Grande Alvarenga do São Bernardo é um Grande Alvarenga do Grande ABC. Espero que o Grande Alvarenga não se torne Grande Alvarenga em substituição ao Grande ABC.

Leia mais matérias desta seção: