Esportes

Qual é o valor da torcida
invisível de nossos times?

  DANIEL LIMA - 22/02/2024

Independentemente do perfil multifacetado do que chamaria de torcida invisível que os tempos de tecnologia avançada e de algoritmos introduzem no futebol, há de se reconhecer mesmo na escuridão com o uso de chutometria que as equipes da região (e de outros territórios também) valem mais do que tempos atrás.

Não se mede mais na materialidade de torcedores nas arquibancadas o valor da marca de nossos times. Eles valem mais do que valeriam em outros tempos de escuridão da ciência comunicacional.

Vou traduzir tudo isso que parece empolado demais para meus gosto de jornalista usando um exemplo prático: enquanto São Bernardo e Santo André disputavam um clássico dramático na segunda-feira da semana passado no Estádio Primeiro de Maio diante de mil gatos pingados, a TV Cazé, na Internet, registrava, ao vivo e em cores, nada menos que 202 mil telespectadores nos últimos 20 minutos da disputa -- após os primeiros 20 minutos registraram mais de 70 mil espectadores virtuais.

Eram mais de 200 mil telespectadores grudados nas maquininhas portáveis de smartfone, nos computadores e também nos televisores, um dos meios cada vez mais utilizados entre as plataformas de telecomunicações. 

MULTIPLICAÇÃO

É gente que só acaba estatisticamente quando o jogo termina, embora não devesse acabar jamais, como explico mais diante. Gente que estava consumindo o produto futebol. Como os mais de dois milhões de usuários de meios alternativos às redes convencionais de televisão que viram também ao vivo um Corinthians versus Novorizontino, ou algo semelhante que assistiram São Paulo versus Santos.

Fiquemos na região. O Santo André fez vários jogos no Estádio Bruno Daniel, nos quais a presença física dos torcedores não passou de pouco mais que mil pessoas. Na TV Cazé chegou-se a 70 mil, não menos que 50 mil. Com o São Bernardo não foi muito diferente.

Vou arriscar alguns dos motivos que estão provocando a superlotação digital dos estádios de futebol e, mais que isso, a potencialidade de mais estádios para o mesmo jogo. Ou alguém tem dúvida de que seriam necessários cinco Neo Química ou cinco Allianz Arena para acomodarem a plateia que acompanhou aquele clássico regional fora das arquibancadas do Primeiro de Maio?

INFLUENCIADORES

Quais seriam as explicações para tamanho contraste? O que acho intrigante, quando não um desleixo, para não dizer imprudência profissional, é que, considerando-se que os dados comparativos entre o físico e o digital não ocorrem apenas nesse campeonato paulista, ninguém de marketing de algum clube ou mesmo de empresa especializada tenha se dado conta do que se apresenta como oportunidade de negócios.

Alguns fatores, portanto, parecem explicitamente implícitos. Sei que você não vai entender o que significaria explicitamente implícito, mas vou explicar. É algo tão espetacularmente escancarado que se chega a duvidar que permaneceria solto, sem despertar curiosidades e estudos.

Vamos então, finalmente, a alguns pontos que, sistematizados, poderiam gerar uma tese a ser entusiasticamente recepcionada:

1. Violência urbana.

2. Preços dos ingressos.

3. Gastos paralelos.

4. Correria diária.

5. Personalização de consumo.

6. Propagação das apostas.

 

DESTRINCHANDO

Sei lá se existe algum quesito relevante a se somar aos expostos. Acredito que o sexteto aí em cima é suficiente para entender o que se passa, mas mesmo assim o máximo que conseguiremos é chegar a algum nível de especulação. Somente uma pesquisa séria daria suporte a definições que surgiriam. Vamos a breve avaliação:

1. A violência urbana dispensaria considerações maiores. Parte dos jogos é disputada no período noturno, quando o bicho pega. Ou nos finais de semana, quando a agenda dos consumidores de futebol está encavalada com demandas familiares sempre a exigirem atenção.

2. Os preços dos ingressos são alarmantemente elevados em relação ao poder de compra dos consumidores de futebol. Principalmente nos confrontos com participação dos chamados times grandes, quando anfitriões exorbitam com aumentos abusivos.

3. Os gastos paralelos envolvem transporte particular ou público, e também despesas extras de alimentação.

4. A correria diária, que vale para todas as médias e grandes cidades, é um convite à rotina de casa-trabalho-casa. O dia seguinte de nova jornada de trabalho sempre chega.

5. Ficar em casa significa, entre outras vantagens, além da comodidade de cumprir intervalo de descanso, a versatilidade de, com o uso de equipamentos tecnológicos de bolso, de home office ou da sala, conectar-se a outros eventos durante ou no intervalo dos jogos. E também de dar uma escapadinha rumo ao banheiro ou à cozinha, que ninguém é de ferro. É preciso ter muita disciplina para não se deixar levar água abaixo uma diversidade em forma de dispersividade. Acompanhar um jogo de futebol em qualquer plataforma tecnológica, e portanto longe dos gramados, é também um exercício de concentração, porque é desafiadora a multiplicidade de opções.

6. A jogatina eletrônica tem no futebol uma clientela cada vez mais fiel e adensada, de gente que em larga escala observa cada partida com os olhos esbugalhados em busca do casamento da lógica do gramado e da subjetividade de escolha do amplo cardápio de oportunidades e armadilhas ao sucesso de apostas. Não fosse um jornalista amigo e talentoso, não teria atentado a esse quesito. Ele me salvou após receber a chamada desta matéria numa das listas de meu aplicativo de WhatsApp. 

VITRINE DE BRECHÓ

O somatório desses fatores parece encaixe adequado na construção de senso crítico em busca de explicações a uma novidade que pode não fazer diferença aos grandes clubes, sempre prestigiados pela mídia em geral, mas, no caso dos clubes com o perfil médio do que temos na região, pode ser a própria autossuficiência.

Ou alguém tem dúvida de que jogar para não mais para mil torcedores no Estádio Bruno Daniel, como se viu até agora em confrontos com equipes semelhantes, é uma vitrine muito pobre, vitrine de brechó, enquanto a audiência virtual emplaca múltiplos muito expressivos?

O que não se pode, por outro lado, o lado da mitigação desses efeitos, é desqualificar o que é quantitativamente exibido apenas porque o qualitativamente permanece obscuro.

Explico: que 202 mil espectadores acompanharam os últimos 20 minutos de São Bernardo e Santo André é uma informação provada e comprovada nos algoritmos e sem mágica de marqueteiro chinfrim. Mais que isso: durante todo o desenrolar do jogo a audiência foi aumentando, após iniciar a jornada digital com perto de 40 mil aparelhos conectados. Então o que temos é uma massa de consumidores na veia.

PRIMEIROS PASSOS

O problema todo, como já disse, é que falta enveredar por caminhos que levariam às raízes dessa audiência. Por exemplo: quantos dos aparelhos sintonizados estariam a serviço de apostadores? Qual o nível de preocupação desses mesmos apostadores com a partida em disputa, independentemente do pragmatismo das apostas?. E, mais ainda, mesmo que seja enorme a parcela de apostadores em relação aos torcedores propriamente ditos, o que temos ao fim das contas são consumidores também.

Acho que ainda estamos apenas nos primeiros passos de uma revolução nos campos de futebol. É mais que evidente, até porque meio caminho já foi percorrido, que além de números de audiência propriamente ditos teremos, quem sabe, distinções que caracterizariam a massa de torcedores digitais e suas potenciais relações com os clubes aos quais estariam vinculados. Daí consequentes e bem empreendidas campanhas de marketing seriam automáticas.

Sei que é impossível responder hoje quantos torcedores do Santo André e quantos torcedores do São Bernardo estavam fora do Estádio Primeiro de Maio, mas acompanharam atentamente o clássico que botou o Ramalhão um passo adiante rumo ao rebaixamento0.

Mas haveremos de chegar lá, ou seja, de ter na tela do computador ou mesmo do smartfone dados de Inteligência Artificial quase que em tempo real de quem é quem nessa virtualidade ainda desprezada como fonte de receitas.

RIVALIDADE E COOPERAÇÃO

Com base nesse banco de dados, que poderia ser compartilhado em ações cooperativas entre os detentores dos direitos de transmissão e os clubes envolvidos, poderíamos contar com iniciativas complementares. Há tesouros escondidos nos dados.

Exemplo: o Santo André, o São Bernardo e o Água Santa, todos hoje na Série A-1 do Paulista, poderiam contar com rede de torcedores digitais aos quais direcionariam ações de marketing diretas para fidelizar a paixão invisível.

Não vou esticar o assunto porque as possibilidades são numerosas e robustas para quem não se conforma com o trivial. O que não se pode admitir e que não tem cabimento é tratar uma mina de ouro como depósito de ossos.

Tenho certa dificuldade em lidar com Exatas desde os tempos de estudante. Não fosse por isso não seria jornalista. Mas mesmo a um quase analfabeto digital como eu, tudo parece tão instigante que custo a crer que não haverá uma alma tecnicamente apetrechada para botar o ovo da potencialização dos negócios no universo do futebol.

Nossos estádios quase vazios podem ser um engano monumental de apatia esportiva. Esse é um assunto que deveria ser tratado conjuntamente pelos clubes locais. Rivalidade é sempre combustível apreciável nos gramados. Fora, a cooperação pode reduzir a distância entre o material e o virtual.

Leia mais matérias desta seção: